Ferrari

Avaliação: 4 de 5.

É bastante estimulante saber que Michael Mann, assim como outros diversos nomes de Hollywood, passa longe de pertencer a um consenso de aclamação crítica. Isso porque o diretor parece não se importar em lidar com certas expectativas. Sua obra fica aquém de alguns maneirismos situados na forma daquilo que ele busca fazer, e isso explica seu sucesso. Observe como há um espécime, que muda ao longo do tempo, sobre os caminhos que a cinebiografia deve ou não seguir, e em ‘Ferrari’, o que vemos é a elucidação de uma linha que vai desde uma referência conjunta até uma explanação afetiva.

Em meados de 1957, Enzo Ferrari (Adam Driver) acumula dor de cabeça: seu negócio, que paira sobre o automobilismo, precisa literalmente de uma revisão veicular. Enquanto sua vida pessoal parece descarrilar como um trem desgovernado, dado o desastre de seu casamento com Laura Ferrari (Penélope Cruz). O que se segue no filme, então, é a oposição entre a carreira do fundador da Ferrari e sua vida como alguém que, de alguma forma, sempre pareceu muito reservado.

E, ao contrário de algumas cinebiografias filmadas recentemente, como ‘Oppenheimer’, ‘Ferrari’ usa a licença poética do diretor como forma dele tomar partido — Michael Mann não esconde que a sua intenção é fazer deste filme um puro exercício do seu estilo, ainda que o tema por vezes esteja longe da correção histórica que obras do tipo costumam ter: Enzo Ferrari foi um homem do seu tempo, mas que reflete o homem de hoje cuja masculinidade às vezes é tão banal que a humanidade parece ter pouco espaço de convivência na consciência humana destes. Foi essa figuração, aliás, que levou o protagonista a enfrentar a justiça por supostamente negligenciar seus pilotos, que deixaram de ser importantes ao morrerem correndo em uma Ferrari qualquer. É também uma explicação de como o homem, o capitalismo e o desejo material de que o carro e toda a carga de adrenalina e beleza por ele proporcionada podem se tornar mortais e insignificantes ao mesmo tempo.

Nisso, impressionam as escolhas do diretor em ordenar sua concepção através do drama, com enquadramento frontal em situações que o texto prepara para discussões. É a maneira mais simples e com maior probabilidade de sucesso de demonstrar seriedade. Já as cenas de ação, corridas de carros que percorrem as paisagens bucólicas da Itália e que funcionam como âncora da realidade, fornecem uma perspectiva de maior publicidade a que já esperávamos vindo de um filme como esse. Enquanto a crueza do tratamento — mesmo que artificializado pelo CGI em alguns momentos e quase completamente tratado com um filtro para estabelecer o vínculo temporal — é a principal chave para situar o espectador no império construído por Enzo, bem como o sotaque que para muitos pode soar incômodo (é inofensivo e não chega perto do que foi o mesmo uso, que muitos detestaram, em ‘Casa Gucci’, por exemplo).

O drama composto por Michael Mann, no entanto, enfrenta dificuldades na complexidade que o declínio prepara para o protagonista. Se por um lado temos todas as complicações éticas em relação à forma como ele tratou seus pilotos, com algumas mortes tragicamente expostas em tela mostrando que, na verdade, o diretor realmente opta por tomar partido em não poupar detalhes que fazem parte da polêmica biográfica; por outro lado, temos a sensibilidade de reconhecer que houve, de fato, um apego às pessoas externas da vida pessoal de Enzo. Penélope Cruz e Shailene Woodley abrem espaço para alavancar a personalidade duvidosa expressada de forma incrível por Adam Driver. Já a humanidade, que parece ausente na sua figura masculina e no seu tesão indescritível pelos motores, só pode ser vista em Alfonso De Portago (Gabriel Leone), um piloto anglo espanhol imortalizado na fotografia conhecida como ‘O Beijo da Morte’, tirada antes dele morrer.

‘Ferrari’, então, não desconstrói a cinebiografia, nem tenta fazê-la brilhar nos olhos de quem vê. É um filme que expõe a fragilidade, que expressa o trágico e usa da polêmica como forma de explorar, narrativamente, um fragmento que tem muito mais para oferecer do que as suas banalidades impostas pela cor vermelha das Ferraris e pelas ruas estreitas onde o automobilismo foi construído antes de se tornar o que conhecemos hoje, precipuamente sob a influência de uma figura histórica do meio.