Festival do Rio – Return to Seoul

Avaliação: 4.5 de 5.

Em “Return to Seoul”, a questão de identidade é construída e desconstruída através das barreiras biológicas e de linguagem, lidadas de maneira magistral por Davy Chou, diretor do longa. O que nos torna o que nós somos? É possível mudar a nossa essência dependendo do lugar em que estamos? Até onde a barreira da linguagem nos distancia? E quanto ela nos aproxima? Chou levanta inúmeras questões aqui e, embora ele nos dê uma pequena amostra das respostas, nada é obtido facilmente.

No papel, o filme segue uma história bem simples, acompanhando Freddie (Park Ji-min), uma mulher francesa de 25 anos que retorna a Coréia do Sul, seu país de nascença, em busca dos seus pais biológicos. Caso fosse focar apenas nesse aspecto, seria uma repetição de uma história já contada um milhão de vezes, mas Chou é capaz de transformar essa busca em um complexo estudo de personagem, focando na ligação que construímos com os locais em que somos inseridos. Desde o começo podemos ver que Freddie não é uma pessoa convencional, ela é confiante e extremamente desinibida, mas com o passar do filme vemos que isso não passa de um sistema de defesa construido por ela por conta da rejeição que enfrentou, e Chou consegue abordar esses temas sem ser enfadonho. Tentar discernir a sua narrativa de maneira analítica é subestimar todas as camadas que o diretor explora ao longo da jornada de sua personagem principal.

Através do centro de adoção que lidou com o seu caso, Freddie consegue estabelecer um contato com seu pai biológico, que demonstra interesse em conhecê-la. Ele e sua família moram em Seoul, então Freddie pede para que sua amiga a acompanhe na viagem, visto que ela não fala coreano. A chegada de Freddie mexe com seu pai e sua família, que fazem diversos avanços mal sucedidos de tentar aproximar os dois. A barreira que separa eles não é apenas a do desconhecido, é também uma barreira linguística. Chou retrata bem todas as dificuldades que envolvem a comunicação entre os dois. As palavras ditas muitas vezes se perdem na tradução, causando uma fração ainda maior entre eles. As intenções de Freddie não são claras em momento algum. A jovem transborda ressentimento e é incapaz de perdoar o próximo. As suas ações são impiedosas, mas como dito antes, isso é uma pequena mostra da sua vulnerabilidade. O filme possui diversas passagens de tempo, então acompanhamos Freddie por diversos pontos de sua vida, mas Chou é determinado em lembrar que, no fim, tudo se resume àquilo. Freddie não é uma personagem fácil de se lidar, visto que existem diversos pontos da sua personalidade que beiram a crueldade. Tanto nas palavras quanto nas atitudes, ela só pensa em si mesma. Freddie é egoísta e não tem consideração por ninguém, e isso fica mais evidente quando percebemos que, durante todas as passagens de tempo, ela estava se relacionando com uma pessoa nova. Ela usa as pessoas e as descarta com facilidade, e mesmo com tudo isso, Chou e Park Ji-min conseguem fazer com que o espectador sinta empatia por ela.

A câmera de Chou parece flutuar em algumas cenas, o que faz com o que filme transpareça suavidade e plenitude, mesmo que o que vemos em cena seja completamente diferente disso. A direção consegue equilibrar bem o ordinário e o singular, contrapondo a calmaria da alma com o excesso visual. A condução do rumo da história e do ritmo do filme é igualmente rigoroso, e Chou consegue projetar a necessidade de contar aquela história no seu tempo sem tornar a experiência em algo monótono. 

No papel principal – que também é seu primeiro papel em um longa-metragem – temos Park Ji-min, que é absolutamente fascinante como Freddie. Park consegue lidar com todas as variações na personalidade de Freddie de maneiras genuína. Toda a sua extroversão possui uma vontade de ser desejada. Todo seu amor possui o peso da perda. Toda sua alegria possui um questionamento sobre o futuro. E toda sua dor possui o peso do passado. Park constrói tudo isso com uma maturidade excepcional. Ela domina e comanda completamente os rumos da personagem, como se estivesse ditando os acontecimentos ao seu redor. É uma interpretação completamente brilhante e multifacetada, sem nunca recorrer às escolhas fáceis que algumas atrizes inexperientes optam.

Mas talvez o grande destaque do filme seja o roteiro assinado por Chou e Claire Maugendre. Toda a riqueza do longa se dá a isso, que torna uma história convencional em uma complexa busca de identidade. A abordagem da diferença de comunicação entre idiomas é um dos pontos mais interessantes do filme. É fascinante ver como uma frase pode ter tantos significados dependendo de quem as fala. Todos os diálogos entre Freddie e seu pai carregam culpa e ressentimento, mas o que mais chama a atenção nessas cenas é como, mesmo com a barreira linguística distanciando os personagens, suas emoções nunca se perdem nas palavras.

A conclusão de Return to Seoul é mais uma demonstração da sua profundidade narrativa. É incrível como Chou consegue dar tanto significado aos mais simples gestos e palavras. Tudo que é dito e sentido pesa toneladas, e mesmo que não seja esse o sentimento que o filme procura, toda a sua grandiosidade vêm desses momentos.


É DO SEU INTERESSE