Um Príncipe

Como explicar um desejo? E como saciá-lo? O questionamento levantado por Pierre Creton em seu novo filme pode ser respondido de uma maneira bastante simples: o desejo é como uma força da natureza, como um impulso que nos atrai e nos repele. A natureza em foco não se restringe apenas ao humano, mas também à natureza intrínseca, tudo que nos cerca, tudo que nos oferece vida. Às vezes, não há explicação para tudo que presenciamos, mas o anseio, o estímulo que nos impulsiona, é suficiente para justificar nossas ações. No novo filme de Creton, acompanhamos o jovem Pierre Joseph (interpretado por Antoine Pirrote), que parece estar completamente carregado pelo desejo de viver. Enquanto seu pai trabalha como armeiro e sua mãe como  taxidermista, Pierre segue a direção contrária, sendo atraído pela botânica. Ele estuda na escola de Françoise (Manon Schaap), onde conhece e constrói uma relação com seu professor Alberto (Vincent Barré) e seu chefe, Adrien (Pierre Barray). Esse anseio que Pierre tem pela vida é retratado ao longo do filme através dos encontros sexuais que ele passa a ter conforme explora os espaços rurais da Normandia. Principalmente envolvendo homens mais velhos, Pierre é capaz de seduzir qualquer um, independente da orientação sexual. Esses encontros sexuais, embora explícitos através da narração que permeia todo o filme, não são reproduzidos visualmente. Tudo aqui é preenchido pelas lacunas deixadas por Creton, adotando uma abordagem totalmente oposta ao “mostre, não conte”. Essa escolha do diretor destaca a natureza subversiva do longa, onde a quebra de expectativa é tão crucial para a narrativa quanto para a relação inseparável entre a obra e o espectador.

O filme começa com uma passagem narrada por Françoise onde ela fala sobre Kutta, seu filho adotivo, alguém que ela ainda procura entender. “Eu não sou capaz de grande ternura. Eu tenho medo que ele quebre”, afirma ela em um certo momento. Mas Françoise parece equivocada. A ternura parece ser a maior dádiva do filme. A maneira com que os personagens enxergam não só a si mesmos, mas também aos outros, é apenas mais uma representação do sublime que impregna o trabalho do diretor. Esta é uma narrativa sobre os toques que moldam nossa existência e tudo o que somos. O tempo, neste caso, é simplesmente uma confirmação daquilo que permanece conosco, o resultado de uma vida que merece ser vivida. Para Creton, envelhecer é apenas prolongar sentimentos. Tentar resumir o seu trabalho a meras palavras parece ser uma maneira redutiva de encarar a forma do cinema moldado por ele, não porque a narrativa proposta é ininteligível demais para ser descrita, mas porque é inviável tentar traduzir os sentimentos evocados pelas imagens que são construídas. O diretor parece mais preocupado com as texturas visuais do que com as camadas narrativas da história, priorizando sempre os sentidos em detrimento da coesão. As abordagens propostas por ele são demasiadas e, por vezes, podem sufocar a história que ele está tentando contar, mas isso para de ser uma questão conforme o filme caminha para uma narrativa menos formal.

Apesar do tom verbal explícito de Creton, o despertar sexual de Pierre nunca soa como uma provocação. O diretor não parece preocupado com as implicações que surgem quando um jovem se envolve com homens mais velhos ou membros da família. Aqui, o desejo não pode ser contido; não há razão para tal. Graças à naturalidade com que Creton aborda essa temática, os encontros sexuais não moldam a história de Pierre, nem alteram quem ele é verdadeiramente. Esses encontros servem apenas como uma forma de expressão, como uma poesia corporal. Essa poesia, inclusive, parece intimamente ligada ao tom do filme. As narrações conferem um aspecto sentimental à história, mas Creton é suficientemente modesto para não transformar as experiências de Pierre em um melodrama. Se não é uma provocação e nem um melodrama, o que ‘Um Príncipe’ pode ser? Creton, nesse caso, parece ter criado uma obra de espécie própria. Às vezes, ela se assemelha a um contato direto com a literatura, às vezes ao cinema documental e, em outros momentos, à ficção. Em todos esses gêneros, a narrativa de Creton surpreende pela elasticidade. Assim como o tempo, a história do filme parece perdurar conforme sua necessidade. Cada cena que antecede um acontecimento opera de maneira independente daquilo que se tornará concreto; não há expectativas, muito menos algo em jogo.

‘Um Príncipe’ parece ser repleto de contradições. É um filme sobre se libertar sem nunca antes ter sido preso. É um filme em que o protagonista lida com a vida enquanto seus pais trabalham diretamente com a morte. É um filme que retrata o amor da maneira menos romântica possível. Por trás de tudo o que Creton cria, nada parece ser impulsionado por dramatizações narrativas. Todas essas contradições funcionam porque todas parecem genuínas. Histórias e personagens parecem ser descartados conforme deixam de servir ao propósito da visão do diretor. Mas que visão seria essa? Com todas essas questões, o propósito de Creton parece ser introduzir uma nova perspectiva no cinema queer. Se ‘Estranha Forma da Vida’, de Almodóvar, recebeu críticas pela falta de romantização entre os personagens, o que isso sugere sobre a maneira como os espectadores lidam com histórias queer no cinema atual? Talvez a visão higienizada que parece ter sido promovida no cinema nos últimos anos seja a principal responsável por isso. Há algo em ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ que parece ter prejudicado a reputação dessas histórias em cena. Acontece que, apesar das boas intenções, o filme de Ang Lee parece ter implantado a ideia de amor proibido como algo a ser admirado. Ao reprimir os desejos de Ennis e Jack, Lee parece ter contribuído para a perpetuação da ideia de que os corpos homossexuais devem se contrapor aos valores da sociedade apenas dentro de quatro paredes. A tentativa de subverter o western em questão não parece genuína, talvez porque Lee apresenta uma versão heteronormativa da homossexualidade. A suposta transgressão dos personagens nunca parece algo concreto devido aos obstáculos políticos inerentes ao tema do filme, temas esses que Ang Lee parece completamente alheio.

Talvez mais próximo da abordagem do despertar sexual na adolescência, temos “Me Chame Pelo Seu Nome”, filme dirigido por Luca Guadagnino. Na história adaptada do livro de mesmo nome, acompanhamos Elio (Timothée Chalamet) enquanto ele se envolve em um romance de verão com Oliver (Armie Hammer). Em ‘Me Chame Pelo Seu Nome’, assim como em ‘Um Príncipe’, nenhuma representação sexual é explícita. No entanto, diferentemente de Creton, Guadagnino parece ser avesso a ideia de erotismo. Não há sensualidade nem desejo no filme do diretor italiano. Para ele, tudo aquilo não passa de um ponto de partida. Na notória cena do pêssego, é possível vislumbrar uma ideia mais expressiva, mas Guadagnino parece condenar seus personagens por tal atitude. O filme não consegue escapar de sua natureza insincera, talvez porque esteja excessivamente preocupado em ser identificável. Guadagnino parece se preocupar demais com as percepções e interpretações que as pessoas podem ter diante de uma história de amor que envolve diferença de idade. Ao tentar permanecer na corda bamba da moralidade, o diretor parece perder qualquer resquício de autoridade sobre a história. É o “cinema de prestígio” em sua forma menos estimulante possível.

Acaba que Creton se torna para o cinema queer o que a cineasta Catherine Breillat se tornou para o cinema feminista: um exilado subversivo. Embora ele não possua a visão combativa e frontal de Breillat, seus filmes parecem contrariar todas as expectativas que existem em torno de seus tópicos de estudo. Ao contrário de Breillat, Creton não parece chocar através de pontos narrativos, mas sim ao insinuar aquilo que muitos preferem ignorar. O que une os dois é simples: o apreço pela sexualidade como forma de expressão. Enquanto Breillat choca ao reproduzir o explícito, Creton parece se preocupar com tudo aquilo que é implícito nas relações sexuais. As dinâmicas de poder, as questões psicológicas por trás dos vínculos de Pierre, tudo isso parece intrínseco às narrações desses encontros. Diante de tais narrações, o filme assume um tom literário. Ao dar o ponto de vista para seus personagens, é como se Creton estivesse dedicando um capítulo a cada um deles. Por alguns momentos, o filme deixa de pertencer a Pierre e passa a se tornar uma experiência coletiva que se encaminha diretamente para aquilo já citado antes: a ternura. Pode não ser uma história de amor, mas é um filme sobre a expressão daquilo que é mais sincero que temos para oferecer.

É somente no último ato do filme que Creton traz ao holofote aquele personagem que funciona como uma carta na manga. Quarenta anos após acompanharmos os encontros sexuais da adolescência de Pierre, agora ele é um homem de idade — interpretado pelo próprio Creton. Atuando como jardineiro de uma residência, Pierre finalmente conhece Kutton, filho de Françoise. “É como se eu já te conhecesse”, diz Kutton a ele. Ambos passaram grande parte de suas vidas ouvindo as histórias e relatos um sobre o outro, mas o acaso quis que eles só se conhecessem na vida adulta. Graças à idealização do amor, que parece deturpada na visão de Creton, o que vemos a seguir não é o desenvolver de um possível relacionamento, mas apenas mais um encontro casual de Pierre. Isso é justo e coeso com sua trajetória, e serve para mostrar que algumas coisas nunca mudam. Não existe final feliz, mal existe um final. ‘Um Príncipe’ termina sem perguntas e sem respostas; não há um grande questionamento nem uma conclusão satisfatória, mas isso é a única coisa que se pode esperar de um diretor que claramente não faz questão de ser adorado.