Festival Internacional de Cinema de Rotterdam 2024

Após cobrir o Festival Internacional de Cinema de Rotterdam em 2022, retornei para cobrir de maneira remota parte da seleção da quinquagésimo terceira edição. Dentre os filmes que assisti durante o festival, entre os curtas e os longas, o melhor foi o novo filme de Kamar Aljafari. Se o cinema muitas vezes se ergue sobre o tangível, em UNDR“, o diretor propõe que o intangível — o que não mais existe ou jamais existiu — também serve como matéria-prima. O foco deste trabalho é a devastação trazida pela ocupação israelense na Palestina, conhecida como Nakba, tema ao qual o diretor tem dedicado sua carreira, explorando os conflitos e as tragédias resultantes. “UNDR” captura, por meio de imagens aéreas, vidas que são observadas, porém raramente percebidas. Sejam desertos inóspitos, crianças a brincar entre ruínas ou edificações parcialmente destruídas, cada cena evoca um profundo sentimento de desolação. Não se trata de uma cidade fantasma, pois a resistência política de sua população impede que sua história seja esquecida, apesar dos esforços contínuos do estado de Israel para que isso ocorra. Esta resistência política, que fundamenta a obra de Aljafari, transcende a arte para se tornar um mecanismo de sobrevivência, uma estratégia adotada pelo diretor em sua própria vida. Para ele, representar essa realidade tal como ela é parece ser a única forma de fazer sua voz ser ouvida.

Os filmes de Aljafari compartilham uma qualidade com os de Rosalind Nashashibi: uma sensibilidade aguçada pela luta diária pela sobrevivência. Apesar de Aljafari optar por imagens mais impactantes para ilustrar a destruição, é a maneira como ambos capturam o cotidiano que tornam seus trabalhos tão identificáveis. Esta abordagem não apenas destaca a humanidade comum em meio ao caos, mas também ressalta um fato frequentemente ignorado: a maior parte dos afetados são pessoas comuns, que, em outras circunstâncias, poderiam ser qualquer um de nós. A visão de crianças brincando de esconde-esconde, seguida pelo som de uma delas contando, contrasta profundamente com a subsequente exibição da destruição material causada por esse conflito. Nunca um trabalho foi tão atual e tão urgente como esse.

“Israel se revelou um local surpreendentemente propício para a produção do filme”. Certamente, essa não é uma das declarações que esperamos ouvir quando Sylvester Stallone, praticamente sem camisa, começa a falar sobre “Rambo III”. Contudo, o impacto que isso gera no espectador é quase instantâneo. Under a Blue Sun”, o novo documentário de Daniel Mann, inicia prometendo uma nova perspectiva na produção e lançamento desse capítulo da franquia de Rambo dirigido por Peter MacDonald, e, por grande parte de sua duração, é exatamente isso que entrega. No material de imprensa, Vanja Kaludjercic, diretora do festival, afirma que “Rambo III é simultaneamente uma reflexão superficial sobre o fracasso da guerra em resolver diferenças e uma interpretação surreal do excepcionalismo americano através das ações individuais.” Certamente, essa é uma maneira de ver o filme, mas o foco de Mann parece recair sobre a escolha da locação onde decidiram rodar o longa. Embora na narrativa Rambo esteja no Afeganistão lutando contra o exército soviético, as gravações do filme de MacDonald ocorreram em solo israelense. Além disso, o filme foi gravado em uma zona de guerra. Quando pediram para manter ao máximo a localização do filme em segredo, um dos responsáveis pela produção sugeriu aplicar um filtro azul nas cenas do deserto, pois dessa forma tudo pareceria mais “estrangeiro”.

“Under a Blue Sun” está para “Rambo III” assim como “Do Not Expect Too Much From the End of the World” está para “Angela Keeps Going”, com a diferença de que Mann, ao contrário de Jude, parece conter um misto de desprezo e fascínio pela figura de Stallone. O filme de Mann atinge seu ápice quando direciona seu olhar para a propaganda política, mas grande parte de sua natureza provocativa se perde quando decide apresentar a situação atual daquela locação. Não que as histórias apresentadas não tenham importância, a questão é, a mudança de tom soa bastante abrupta, resultando em dois trabalhos que são completamente opostos.

Na minha última cobertura do Festival de Rotterdam, Gurvinder Singh apresentou seu filme “Crescent Night”, que narra o retorno de um homem à sua comunidade após passar quinze anos aprisionado. Embora tenha respeitado a abordagem do diretor referente às dificuldades enfrentadas na ressocialização, existia uma certa rigidez na sua abordagem que fez com que grande parte do filme não funcionasse para mim. Agora, Singh retorna a Rotterdam com Trolley Times“, um documentário de duas horas e meia sobre os protestos dos agricultores que abalaram a Índia. Originados pelo movimento popular contra a reforma agrícola, os protestos parecem responsabilizar Narendra Modi pelos ideais imperialistas de seu governo. O documentário, dividido em quatro capítulos, efetivamente amplia a dimensão dos protestos, acompanhando desde os manifestantes até seus familiares que permanecem em casa durante essas reivindicações. Singh realiza uma exposição um tanto quanto didática dos protestos, proporcionando voz àqueles que parecem ser diretamente afetados por essa reforma, a qual aparenta beneficiar muito mais os donos de corporações do que os agricultores que dependem da venda de produtos do campo.

Enquanto gasta grande parte do seu tempo mostrando as movimentações populares na rua, o trabalho de Singh prospera. É um manifesto político frontal que automaticamente força o filme adiante da discussão que ele causa. No entanto, quando o diretor volta sua câmera para aspectos mais pessoais da vida dos manifestantes, o filme perde consideravelmente parte de sua fundamentação argumentativa. Recorrer ao apelo emocional é válido, mas também representa uma forma de manipulação que torna a abordagem de Singh mais arbitrária. É uma escolha mal avaliada que, embora não diminua os méritos conquistados até então, parece buscar apoio mainstream, o que não condiz com a natureza deste tipo de filme. Parece que, por grande parte da obra, Singh opta por uma abordagem mais radical, apenas para, nos últimos instantes, adotar uma postura convencional, priorizando o sentimentalismo em vez do engajamento político.

Integrando a mostra da Competição Oficial, “sr” de Lea Hartlaub certamente merecia o título de “Filme Mais Ensaistico”. Abrangendo um vasto período da história da humanidade, a obra de Hartlaub transcende uma única definição, pois constantemente coloca o espectador na dupla posição de explorador e historiador. O propósito aqui vai além de meramente observar ou assistir; trata-se de interagir de forma mais distante com a evolução do que significa ser humano. Contudo, curiosamente, é predominantemente um filme sobre girafas. A diretora elabora uma obra que transcende séculos, explorando não apenas a origem do animal, mas também o seu significado ao longo da história. Ao remontar à Idade da Pedra, a narrativa sugere que a motivação para a representação de animais nas pinturas rupestres não residia em sua beleza, mas no significado que eles possuíam para as comunidades daquela época. Essa reflexão ecoa a essência do cinema: os cineastas criam histórias que carregam significado, seja para eles mesmos enquanto indivíduos ou para os grupos que eles buscam representar, e no que diz respeito a isso, Hartlaub é ótima no que faz.

O contexto histórico por trás dos fragmentos que a diretora traz sempre carregam com si um contexto político e social do ambiente geográfico em questão. Embora, em certos momentos, os aspectos técnicos possam parecer predominar sobre a narrativa central, é justamente essa inacessibilidade que confere a ‘sr’ seu caráter distintivo. O contraste entre as passagens técnicas e burocráticas e as gravações estáticas de paisagens ou do animal em foco estabelece um paralelo quase inquietante entre o aspecto natural da história e a complexidade da linguagem empregada pela diretora, que parece determinada em provar que, às vezes, o excesso de informação nunca é demais.

Já no curta mais recente de Tomonari Nishikawa, intitulado ‘Light, Noise, Smoke, and Light, Noise, Smoke‘, tudo parece de menos. O que se destaca além do evidente espetáculo de fogos de artifício de um festival de verão japonês é a abordagem sonora que o diretor decide utilizar. O áudio do filme atua como uma espécie de reinterpretação dos fogos, adaptando-se ao som da câmera analógica Super 16. Enquanto a edição sugere um novo espetáculo visual a cada corte, é o som que introduz ritmo e dissonância à imagem. O ponto em discussão passa a ser não apenas a organização estrutural do filme, mas, sim, o impacto sensorial que essas sequências provocam no espectador. Aqueles que já presenciaram uma queima de fogos sabem que, por vezes, o barulho pode ser esmagador, então ao subverter as expectativas de como eles devem se manifestar, Nishikawa realiza uma grande farsa — e o resultado não poderia ser mais admirável.

Utilizar adjetivos como “importante” na hora de descrever um filme parece ser uma maneira redutiva de encarar a arte, afinal, não seriam todos os trabalhos importantes em sua essência? Mas quando se trata de Mário, dirigido por Billy Woodberry, não existe outra palavra para descrever tal projeto. O novo documentário do diretor de “Abençoe Seus Pequeninos Corações” não é apenas uma reminiscência do legado do ativista político e fundador do Movimento Popular de Libertação de Angola, é também uma obra monumental que ressalta a profunda conexão entre política e cinema. Ao lado de figuras proeminentes como Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Guilherme Espírito Santo, Marcelino dos Santos e Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade se destacou como um dos ativistas mais influentes no movimento anti-colonial africano. O filme de Woodberry traça um panorama detalhado de sua trajetória, desde a infância em Luanda até sua ida para Lisboa, onde deu início a uma carreira política. A partir deste ponto, os desenvolvimentos abordados no filme fogem do meu aparato, visto que o estilo ensaístico do diretor às vezes se torna técnico demais para a compreensão daqueles alheios aos desenvolvimentos do movimento político anti-colonial dos países africanos. O que se destaca é o resgate da memória de um personagem quase esquecido pela história. Minha afirmação não é exagerada; encontrar informações detalhadas sobre Mário fora de artigos científicos publicados em seu nome é uma tarefa quase impossível. O trabalho de arquivo de Woodberry se torna a peça-chave que faz com que todas as lacunas da memória desse personagem sejam preenchidas, mesmo que ao longo das duas horas de duração algumas dessas informações se tornam excessivas.

Mas o que distingue o trabalho de do diretor, elevando-o além de um simples filme-ensaio, é como ele tece a história de Mário com o cinema anti-colonial africano de figuras como Sarah Maldoror e Ousmane Sembène. Maldoror, que foi casada com Mário, destacou-se no cinema com seu curta “Monangambeee” (também co-escrito por Mário), ambientado durante a Guerra de Independência de Angola. Nele, um preso político solicita à sua esposa que lhe traga um “fato completo”, um prato típico angolano. Por desconhecimento, as autoridades coloniais interpretam o pedido como uma possível conspiração e passam a torturar o prisioneiro. Com esse trabalho, Maldoror conseguiu demonstrar quão ignorante e cruel o colonialismo realmente é, revelando como suas autoridades trabalham ativamente para extinguir qualquer vestígio cultural daqueles que estão sendo colonizados. Esse tipo de ativismo também se reflete no cinema de Sembène, cujas obras, embora mais focadas no colonialismo francês, compartilham os mesmos ideais políticos de Mário e Maldoror. O diretor inclusive faz uma breve aparição no documentário ao participar de um dos encontros em prol da independência. Seja nos momentos em que Woodberry destaca a magnificência de Mário como ativista político ou opta por focar no impacto do cinema ao transformar movimentações políticas em obras atraentes para o público, é difícil imaginar que algum outro filme deste ano alcance sequer metade de sua grandiosidade.

Assim como “Mario”, outro filme que resgata o trabalho anti-colonial de uma figura esquecida no passado é The Ballad of Suzanne Césaire, de Madeline Hunt Ehrlich. O filme acompanha uma atriz (interpretada por Zita Hanrot) que, ao ensaiar os diversos arquivos da escritora vanguardista francesa, parece cada vez mais se perder na linha que as separa. Aqui, o foco parece ser não apenas a relação do ator com o texto, mas também do indivíduo com o ambiente e do “eu” com os conflitos internos que parecem contradizer todos os nossos desejos.

Embora em uma escala muito menor, o trabalho da diretora evoca o sentimento que ‘Império dos Sonhos’ causou ao retratar uma atriz que parece se perder nas divergências entre o real e a ficção, entre o sofrimento particular e o trauma coletivo. Mas as dinâmicas em jogo no filme de Hunt Ehrlich tentam alcançar muito mais do que apenas um comentário sobre uma atriz que se perde na sua personagem. O texto surrealista de Suzanne Césaire parece ditar o tom e ritmo do filme conforme a frenesi se instala sob a pele, e a incerteza do que está diante dos nossos olhos parece se tornar cada vez mais evidente. É verdade que, por trás de todo esse experimento, o filme de Hunt Ehrlich não nos diz muito sobre todos os desenvolvimentos da vida da escritora, mas a escolha, além de explicitamente deliberada, é o que permite que o filme vá além. “Nós estamos fazendo um filme sobre uma artista que não queria ser lembrada”, diz a personagem principal em um certo momento. A diretora não só honra esse desejo como também o usa como seu maior triunfo. Em uma época em que a única maneira de relembrar grandes artistas parece se limitar a cinebiografias previsíveis, que seguem a fórmula básica de ascensão e queda, é revigorante testemunhar uma obra que desafia as barreiras narrativas típicas desse gênero. Neste caso, a transgressão serve como uma ferramenta política, não apenas por retratar uma figura reconhecida por seus ideais, mas porque ser uma “anti-biografia” se torna o principal objetivo desse projeto.

Se “The Ballad of Suzanne Césaire” tenta ocultar uma trajetória, yours,” parece exalta-lá. Em um esforço coletivo, as cineastas Eva Giolo, Rebecca Jane Arthur, Katja Mater, Sirah Foighel Brutmann, Eitan Efrat e Maaike Neuville se uniram para um projeto que busca servir como uma expressão individual e coletiva do impacto que o trabalho da cineasta belga Chantal Akerman teve em suas respectivas carreiras. As referências a Akerman abrangem desde ‘Notícias de Casa’ até ‘Toda Uma Noite’ e ‘Não É Um Filme Caseiro’. Por um momento, até ‘Eu, Tu, Ele, Ela’ parece servir como alusão. É perceptível que, embora todos os projetos sejam bem-intencionados, alguns funcionam melhor do que outros; no entanto, de maneira geral, o filme capta bem a essência dos trabalhos da diretora. Isso se manifesta tanto no estruturalismo das sequências iniciais quanto na compreensão do espaço, seja físico ou temporal, que permeia as cenas domésticas. Além disso, a obra explora a iniciativa de confronto direto por meio de cartas, uma ferramenta glorificada pela diretora. “Eu queria inverter a perspectiva e enxergar através dos seus olhos, mas eu não sei como fazer isso”, expressa uma das cineastas. A busca pela complacência nesse caso soa autêntica, transformando toda essa homenagem em algo mais próximo de uma retórica. Se é para prestar homenagem à maior diretora da história do cinema, que seja feito dessa forma.