Veneza 2023 – Yurt

No cinema moderno, é necessário exercer certa cautela quando se trata da representação de grupos sociais. A identidade é um objeto que, por mais intrínseco que seja, possui uma ressonância que, quando abordada como alvo de estudo, pode assumir proporções maiores. Examinar um grupo social inteiro por meio de uma perspectiva crítica pode, por vezes, conter um resquício de julgamento. É importante enfatizar que, ao adotar uma perspectiva crítica, é essencial considerar toda a abordagem sociocultural do objeto de estudo, incorporando sempre as nuances e complexidades que o tornam tão interessante. “O Jovem Ahmed” (2019), filme de Jean-Pierre e Luc Dardenne, retrata a radicalização religiosa e identidade de Ahmed, um jovem mulçumano que vive na Bélgica. O filme atraiu atenção em sua estreia no Festival de Cannes, dividindo a crítica entre comentários que vão desde “uma de suas obras-primas mais extraordinárias” até “uma péssima combinação entre o fanatismo e a perspectiva dos diretores”. Não há uma abordagem única para representar um grupo social, desde que a sua construção respeite a sensibilidade do espectador. “Yurt”, filme de Nehir Tuna, consegue abordar os mesmos temas de religião e identidade sem nunca julgar o modo de vida daqueles representados na tela. 

O conflito entre os religiosos e os secularistas turcos é o foco central de “Yurt”, que desde o seu início deixa claro o seu caráter político ao retratar a forma como o país foi dividido devido ao secularismo estabelecido pela Turquia moderna de Atatürk. O filme segue a jornada do jovem Ahmet (Doğa Karakaş) e sua relação com o islamismo. Os dormitórios onde Ahmet reside são considerados como uma fonte de extremismo islâmico, enquanto a escola se adere às normas secularistas. O filme, que pode ser considerado um coming-of-age, mostra como o processo de identificação e pertencimento impactam o desenvolvimento de Ahmet, que tenta desesperadamente se encontrar. O jovem passa grande parte do seu tempo em conflito com as expectativas que pairam sobre ele. Em um momento, ele se esforça para se tornar um bom seguidor do islamismo, enquanto em outro parece rejeitar seguir os passos de seus próprios pais. O embate entre a tradição e a transgressão é a abordagem mais eficaz do filme. É por meio desse conflito que todo o dilema enfrentado por Ahmet se torna tão envolvente. O anseio de fazer parte de algo é o sentimento mais verdadeiro do filme, que se encontra completamente ao questionar se uma vida só vale a pena se ela for movida por algum propósito. 

A direção de Tuna dá uma importância até aos momentos mais simples, como o de ouvir música clássica secretamente no banheiro do dormitório. Tudo o que Ahmet vivencia desempenha um papel fundamental em seu desenvolvimento como personagem. A fotografia em preto e branco de Florent Herry proporciona uma abordagem fria e minimalista à narrativa, enquanto a trilha sonora de Avi Medina, por sua vez, tende a adicionar uma carga emocional desnecessária à história. Diferentemente da abordagem dos Dardenne em “O Jovem Ahmed”, Tuna não parece estar particularmente empenhado em alcançar o realismo. Embora haja similaridades entre “Yurt” e a vida pessoal do diretor, o filme nunca se torna excessivamente íntimo. É perceptível que diversos fragmentos de sua própria experiência foram traduzidos para o filme, mas esses momentos se integram de forma condizente com a narrativa de Ahmet. Em nenhum momento se questiona a autenticidade com que ele conduz a história, o que pode ser atribuído à sua proximidade com o tema.

Entretanto, em um momento do filme, ocorre uma mudança narrativa que prejudica o fluxo da narrativa. Ao trazer as cores de volta — em uma cena muito semelhante à mudança de aspect-ratio de Mommy (2014), de Xavier Dolan —, o filme parece perder boa parte do que havia conquistado. O que inicialmente era uma história sobre o desenvolvimento da identidade, ao abandonar completamente o contexto político e negligenciar suas questões mais essenciais, assume um tom meramente artificial. Toda a expressividade na maneira como Tuna abordava a divisão causada pelas questões religiosas que envolviam os personagens parece se esvair. Isso não significa que esses momentos finais sejam totalmente desinteressantes. Existe um confronto que aborda temas de classe social que consegue resgatar parte da relevância da história, mas é inegável a queda de ritmo que o diretor oferece ao chegar ao desfecho de sua trama. É como se, ao final do filme, o espectador vivenciasse a mesma quebra de expectativa que Ahmet representou para sua família.