Cannes 2024 – All We Imagine As Light

“A cidade tira tempo de você”, quando essa passagem é dita logo no começo de All We Imagine as Light, novo filme de Payal Kapadia, é fácil entender o que ela quer dizer. A Mumbai filmada pela diretora parece um lugar esmagador, capaz de engolir os desavisados. É uma cidade onde tudo parece fácil de se perder e difícil de se encontrar. O foco de Kapadia parece estar no fluxo de pessoas — ela sabe que nada ali é permanente. Ela filma a cidade com o mesmo romantismo visual que Chantal Akerman usou para retratar Bruxelas em “Toda uma Noite”, mas se Akerman trabalha com as imagens como um indivíduo, Kapadia faz delas um coletivo. O que as duas dividem é o sentimento de solidão carregado pelo lirismo de suas sequências.

Na história acompanhamos duas migrantes, a enfermeira Prabha (Kani Kusruti) e Anu (Divya Prabha) sua colega de trabalho e de quarto. Enquanto Prabha parece fechada para novos relacionamentos, recusando as investidas de um médico conhecido seu, Anu parece estar vivendo sua primeira paixão. Tudo parece em ordem até que, certo dia, Prabha recebe um presente do seu marido distante. Ele se mudou para a Alemanha logo após o casamento arranjado deles com a promessa de que levaria ela com ele assim que possível, mas isso não se tornou realidade. Eles vivem afastados, sem qualquer tipo de contato, então é normal que a chegada de um presente seja suficiente para carregar Prabha de volta para o passado. 

All We Imagine As Light pode ser considerado também uma história sobre chegadas e partidas. Ao lidar com a diferença geracional entre Prabha e Anu, Kapadia consegue construir bem a ideia de fins e recomeços, de estagnação e impulso. Enquanto Anu carrega a inocência e ânsia de viver um primeiro amor, Prabha parece ter uma visão mais realista da vida. Ela sabe que nenhuma delas pode escapar do seu destino e que às vezes não vale a pena se colocar contra o mundo, mas suas tentativas de fazer com que a jovem considere suas colocações parecem ser em vão. Anu é uma rebelde por natureza, desde seu trabalho no hospital onde ela oferece pílulas anticoncepcionais indiscriminadamente até seu desejo de amar o homem que ela deseja, não o que sua família escolheu para ela. O trabalho de Kapadia aqui é inerentemente político, onde a radicalização dos seus personagens marginalizados só acontece no interior. São poucas as cenas onde eles externalizam suas indignações perante uma sociedade que parece trabalhar à custa de tornar uma parcela de sua população invisível.

Mas o que torna o filme de Kapadia tão especial é a maneira como ela consegue transformar os aspectos mais comuns da vida em algo extraordinário. “Meus sonhos são feitos de coisas do dia a dia”, diz um dos poemas lidos no começo do filme. Esse tipo de linguagem poética que traz distinções entre o espaço e os personagens lembra “O Rio Sagrado” de Jean Renoir e “História de Taipei” de Edward Yang, embora o filme de Kapadia funcione de uma forma muito mais abrangente. Mesmo sem seu marido, Prabha sente um sentimento de pertencimento por esse lugar que, por grande parte das vezes, parece não ter nada a oferecer a ela. Ela, embora carregue um grande ressentimento dentro de si, encontra prazer em atividades cotidianas que na maioria das vezes envolvem ajudar aqueles que estão ao seu redor. Ela paga a parte de Anu no aluguel, e luta ao lado de sua colega Parvaty (Chhaya Kadam) para que ela consiga manter sua casa. É mais do que apenas um conto feminista, é um trabalho revolucionário que mostra como empatia e consciência social andam lado a lado.

Existe um nível de excelência na linguagem de Kapadia que deixa nítido a razão pela qual ela foi selecionada para representar a Índia em Cannes depois de trinta anos sem nenhum filme do país na competição oficial. Da mesma maneira em que a sensibilidade do seu filme não está só nas imagens, a poesia também não está só no seu texto. Quando, ao entrar em uma caverna com seu pretendente, Anu observa uma estátua e diz “É como se ela estivesse presa aqui, esperando alguma coisa acontecer”, o filme logo corta para Prabha, que desde a partida de seu marido parece permanecer no mesmo estado em que ele a deixou. Como o próprio diálogo do filme diz, quando se está no escuro não é possível imaginar luz. Prabha talvez não consiga viver uma vida diferente, talvez porque ela não ache que tenha mais tempo para isso ou talvez porque ela não conheça outro tipo de vida. Mas nada na visão de Kapadia sugere que a personagem está sendo punida; pelo contrário, a diretora parece mostrar como, apesar de tudo isso, Prabha ainda consegue ser resiliente e tentar dar para as outras mulheres aquela vida que foi tirada dela.