Uma viagem de carro, uma sequência de dança, uma relação amorosa – as primeiras imagens de ‘Légua’, o novo filme de João Miller Guerra e Filipa Reis, evocam representações de libertação, onde Ana (Carla Maciel) vive sua vida da maneira que bem entende. Essa liberdade é encurtada à medida que o filme decide estreitar os horizontes de sua protagonista, que escolhe ajudar sua amiga Emília (Fátima Soares), uma senhora que trabalha como caseira em uma antiga mansão. Emília, que aparenta estar debilitada devido à sua idade, vive sozinha na mansão, pois os donos do imóvel raramente visitam o lugar. Apesar da ausência deles, Emília nunca deixa de trabalhar. As tarefas diárias fazem parte de sua rotina e, para ela, podem servir como atividades inventadas para ocupar o tempo. No entanto, a verdadeira razão pela qual ela as realiza é devido a uma imposição causada pelas questões de hierarquia social que parecem sempre presentes nas relações de empregado-patrão, onde ela, como subordinada, permanece na eterna função de auxiliar. Emília não parece estar ciente das questões de classe que a prendem naquela casa, talvez porque tudo aquilo já tenha se tornado habitual em sua vida. Dito isso, toda a questão social da trama parece implícita demais para afetar diretamente a história, e devido ao fato do conteúdo ter sido influenciado pela vivência de João Miller Guerra, talvez não seja interessante que a história seja vista sob esse olhar.
A presença de Ana, por mais simples que pareça nos primeiros momentos, serve não só como uma maneira de aliviar Emília das tarefas domésticas, mas também como um processo para humanizar a permanência dela naquele lugar. Somente com a chegada de Ana é que Emília começa a pensar em si mesma, levando-a a buscar ajuda médica após um mal-estar. Nesse momento, a história de ‘Légua’ segue caminhos previsíveis para o público. Não há nenhuma reinvenção da roda na maneira como Guerra e Reis lidam com a enfermidade de Emília e a relação dela com Ana, mas talvez isso se deva à abordagem que decidem adotar. Em vez disso, Guerra e Reis optam por um tom contemplativo em uma espécie de estudo de personagem e gerações. Emília representa a geração mais antiga, que ainda acredita em modos e etiquetas arcaicas, onde o empregado sempre deve reconhecer seu espaço como subordinado. Ana representa a geração de meia-idade, onde parte de sua vida parece bem resolvida, permitindo que ela se expresse e aja da maneira que deseja, sem dever satisfações a ninguém. Mônica (Vitória Nogueira da Silva), filha de Ana, representa a nova geração, que parece ter pouco interesse em seguir os caminhos designados por sua família; pelo contrário, elas agem essencialmente contra essas imposições. A forma como os diretores abordam esses três personagens e a relação que têm com seu lugar na sociedade é o aspecto que destaca ‘Légua’ entre outros dramas sociais.
Por mais subjacentes que essas questões possam parecer, são elas que ditam as razões psicológicas por trás dos principais acontecimentos do filme. A maneira como essas personagens se relacionam, não apenas entre si, mas também com o mundo ao seu redor, ocorre em um ritmo mais realista, que o filme decide adotar em seu desenvolvimento. A mudança das estações serve como recurso narrativo não apenas para fazer progredir a enfermidade de Emília e as consequências desse acontecimento, mas também para mostrar que todos os ciclos têm um começo e um fim.