Cannes 2023 – A Flor do Buriti

A importância de contar histórias, tanto no cinema quanto na vida real, abrange diversas questões. Além de ser uma maneira de transmitir e adquirir conhecimento, ao compartilhar histórias também revivemos um pouco daqueles eventos, o que abre um leque de possibilidades na forma como decidimos nos envolver com esse tipo de conteúdo. No cinema, o storytelling serve para representar esse tipo de ideia de uma maneira mais concreta e visual. Seja através de documentários, nos quais os recursos narrativos se originam da realidade do objeto de interesse, ou seja, a atração principal, ou em filmes ficcionais, em que existe um interesse mais direcionado e objetivo na forma de contar histórias. “A Flor do Buriti”, o novo filme de João Salaviza e Renée Nader Messora, utiliza o storytelling não apenas na questão narrativa, mas também como uma ferramenta político-social como conscientização. Seja direcionado aos indígenas para os quais o filme é dedicado, ou para o espectador que pretende se envolver com a causa, o filme busca retratar a história de opressão vivida pelo povo Krahô.

Logo nos primeiros momentos, é possível ver duas mulheres discutindo a demarcação de terras enquanto assistem a uma deputada indígena discursar no Congresso Nacional. Elas pretendem viajar até Brasília para se juntarem aos protestos que estão sendo organizados. Esses momentos retratados no filme de Salaviza e Messora carregam um senso de urgência, com uma abordagem quase documental dos eventos políticos que têm marcado nosso país. Em uma sequência ao final do filme, vemos essas mulheres e outras centenas de pessoas protestando contra o — até então — governo Bolsonaro. Esses momentos de ‘docudrama’ trazem aspectos relevantes ao filme, mas também acabam inibindo a construção da narrativa, que acaba sendo diminuída quando se é colocada ao seu lado.

Nos outros momentos do longa, quando os personagens realizam rituais que fazem parte do seu cotidiano, a urgência da história funciona mais como um subtexto. Há também um aspecto espiritual na maneira como os diretores decidem contar essa história. Em certo momento do filme, Jotaj, uma das crianças, viaja para um Brasil do passado, em que a ditadura militar havia tomado conta do país. Através dos olhos da menina, vemos fragmentos da história em que a Guarda Rural Indígena era criada com o objetivo de oprimir os povos que se opunham ao regime. Os horrores desse período no Brasil parecem não ter ensinado nada às novas gerações; pelo contrário, o senso de injustiça e impunidade é mais presente do que nunca. No entanto, é esse tipo de sentimento que parece impulsionar “A Flor do Buriti”.

No caso do filme, a importância de contar histórias vem de um lugar em que a mentalidade é a seguinte: entender a história para que ela não se repita. Para Patpro — que serve como um contador de histórias e guarda da aldeia — aprender sobre o passado é uma maneira de se defender. É através desses momentos que marcaram a história do povo Krahô que ele tenta conscientizar a nova geração que quando se é uma minoria nesse país, não existe outro caminho senão o da sobrevivência.

Patpro é retratado como a figura mais importante do filme, não apenas por sua posição na aldeia, mas também pelo significado de sua história. Ele tenta se engajar politicamente, mas se vê dividido quando recebe a notícia de que sua esposa está prestes a dar à luz seu novo filho. Patpro deseja participar dos protestos em Brasília, mas sente a necessidade de estar presente para proteger sua família. Esse dilema, embora interessante, é abordado de maneira mais comum em sua execução. Na verdade, toda a abordagem do filme possui esse caráter trivial. A primeira hora do filme apresenta os diálogos mais críveis que esses habitantes podem ter. O que para nós pode parecer diferente, para eles não passa do habitual. Mesmo quando o filme adota Patpro como narrador, com a intenção de se comunicar diretamente com o espectador ao mesmo tempo em que insere essa linguagem em sua narrativa, tudo soa natural.

Embora ambiciosos, Salaviza e Messora conseguem mesclar bem os aspectos narrativos do filme. Em alguns segmentos, podem ser feitas comparações com o misticismo presente nos filmes de Apichatpong Weerasethakul e Jakrawal Nilthamrong, enquanto que em outros momentos remetem aos docudramas que têm se tornado cada vez mais frequentes no cinema mundial. Na verdade, os diretores parecem deliberadamente borrar a linha tênue que separa o real e a ficção em “A Flor do Buriti”, nos deixando constantemente em dúvida se o que estamos assistindo é um ato encenado ou uma verdade documentada.