Todo mundo conhece a história de Pinóquio e seu criador, Gepeto. Ou pelo menos boa parte das pessoas que cresceram consumindo as animações da Disney, em especial o clássico de 1940, ainda se recordam daquelas aventuras vividas pelo boneco que ganhou vida através da magia da Fada Azul e se meteu em grandes confusões por não escutar os conselhos dos mais velhos e sábios, principalmente do Grilo Falante. Tudo isso enquanto seu nariz crescia sempre que uma nova mentira era contada! Acontece, no entanto, que este filme em questão não é uma adaptação daquele lançado pelos estúdios de Mickey Mouse há mais de uma década, embora, coincidentemente ou não, tenha sido lançada uma versão como essa no começo deste ano também. Combinando elementos da Europa da época com a essência fantasiosa do conto de fadas escrito por Carlos Collodi, Guillermo del Toro’s Pinocchio resgata o que existe de melhor na já extensa bagagem do cineasta que empresta seu nome ao título e reafirma que cinema fantástico é para quem realmente sabe como fazê-lo.
De Abraham Sapien em Hellboy (2004) e sua continuação de 2008 à Criatura que protagoniza o encantador e sombrio A Forma da Água (2017), del Toro tem atuado regularmente como um artesão de mãos singulares dentro do cinema fantástico. Não muito diferente do criador do protagonista da vez, o cuidado do cineasta para com a elaboração das criaturas que atuarão em suas narrativas é refletido do primeiro ao último momento em que aparecem em cena, desde a maneira que caminham a como compartilham o espaço com atores reais como Sally Hawkins. Desta forma, o que se tem vez após outra é o que pode ser considerado enquanto um ato puro e bastante convidativo de transformação de sua fértil e curiosa imaginação em uma realidade que funciona aplicando a própria lógica no cinema, algo que imediatamente demonstra o quão adequada foi esta decisão de adaptar toda a jornada de Pinóquio e seus demais companheiros em uma animação que abraça o tradicionalismo do stop-motion.
Dentre as muitas encarnações de Pinóquio no decorrer das décadas desde a publicação do conto de Collodi e a exibição da bem conhecida animação de Sharpsteen e Luske, esta se destaca consideravelmente devido ao seu tom mais maduro. Claro, este ainda é o bom e velho boneco de madeira que ganhou vida magicamente junto de toda aquela inocência e curiosidade em desbravar o mundo que está além daquele cerco de proteção criado por seu próprio pai, no entanto del Toro e o co-roteirista Patrick McHale não ignoram qualquer possibilidade de destacar temáticas mais profundas como luto e busca por aceitação paternal. Tudo parece convergir em direção aquele idílico interior da Itália que parece ter sobrevivido, com claras modificações, as consequências da Grande Guerra, de um Gepeto introduzido como um cidadão comum que segue uma rotina composta por trabalhos nas esculturas religiosas da igreja local e cuidar do filho à chegada de um circo, anos mais tarde, cujas apresentações passam a exaltar a figura autoritária de Benito Mussolini, que estava no auge da ascensão do fascismo pelo país.
Há espaço para tudo nesta adaptação de del Toro, é como se ele tomasse conhecimento da capacidade que uma animação possui para alcançar de diferentes formas as diferentes camadas do mesmo público e não temesse explorar estas possibilidades. Inicialmente algo bem próximo de um registro das consequências da Grande Guerra nas vidas daqueles que possuíam pouquíssima relação com o que estava ocorrendo através da Europa, não leva muito tempo até que esta história comece a abraçar outras tantas facetas fundamentais na composição deste retrato que não carece daquela tão satisfatória essência de um conto infantil com lições morais valiosas a serem aprendidas. Após um nascimento que bebe das características mais memoráveis da sequência de criação de Frankenstein no clássico de James Whale, um novo mundo parece florescer por baixo daquele introduzido, mas sem deixá-lo para trás, apenas redesenhando seus contornos e mergulhando ainda mais em quem são estes personagens.
As incursões contra movimentos totalitários como o fascismo de Mussolini e a hipocrisia religiosa não são poucas e ocorrem sem pudores, sendo tão ácidas quanto é possível ser sem permitir que todo esse viés político tão recorrente ao roteiro acabe por ofuscar aquele encantamento duradouro que há em acompanhar uma jornada tão formidável quanto a de Pinóquio, e principalmente crescer ao lado dele diante de cada aprendizado. Para o primeiro, é reservada boa parte das dinâmicas sociais que acompanhamos, com um foco especial nas relações entre pais e filhos; aquela perversa expectativa que existe entre um conquistar a aprovação do responsável e o outro estar sempre exigindo que a criação seja uma reprodução perfeita de seus próprios discursos. Já o segundo, vem acompanhado do olhar julgador da escultura de madeira de Jesus Cristo, observando toda aquela contradição que floresce diante do primeiro contato com o protagonista, quando ele é tido como aberração enquanto estes mesmos cristão seguem adorando alguém feito do mesmo material.
Neste aceno ao sobrenatural através das criaturas que passam a ter contato com Pinóquio enquanto forças capazes de alterarem o destino comum e o embate entre vida e morte, o protagonista lentamente começa a reconhecer a existência das condições humanas que estão presentes tão profundamente dentro de si. Inicialmente uma representação daquela criança-quase-adolescente que constantemente se sente presa a um cenário de incompreensão e está sendo sempre sufocada por aquele fardo das expectativas, o boneco logo ganha outras tantas facetas, compreendendo o que é amar e ser igualmente amado, e o peso dos sacrifícios que precisam ser feitos por aqueles que tanto amamos. Nos últimos passos de sua jornada, quando está prestes a encerrar a louca aventura que viveu porque estava buscando pela validação de Gepeto, ele faz as pazes consigo mesmo e os seus próprios erros, entendendo que são justamente estas falhas as maiores responsáveis por nos permitirem adentrar este caminho de autodescoberta.
Após encerrar sua trilogia de homenagens a Era de Ouro de Hollywood com o sombrio e intimista O Beco do Pesadelo, Guillermo del Toro retorna ao cinema com um lembrete quanto a capacidade inigualável de encantamento que esta arte sempre foi capaz de proporcionar para sua audiência no decorrer das décadas. Sem recusar aquela magia que está tão presente no conto de Collodi e principalmente a essência que há por trás de uma jornada de crescimento que permite o reconhecimento das próprias falhas, Pinocchio combina todas estas características com as crenças de seu novo diretor, compondo uma das experiências mais comoventes para este final de ano.