Till – A Busca por Justiça

Avaliação: 4 de 5.

Ao lidar com a perda imensurável que atingiu Mamie Till, Chinonye Chukwu faz jus à sua luta por justiça de maneira sensível e empática, sem nunca fazer com que o sofrimento seja o sentimento mais ressoante do seu filme. Apesar da sua natureza biográfica, a direção de Chukwu sugere uma visão mais inventiva para um acontecimento que continua impregnado na memória coletiva dos Estados Unidos. A morte de Emmett Louis Till é um dos capítulos mais cruéis da história do país e uma demonstração de como o sistema judicial falha com aqueles que mais precisam dele.

A narrativa começa cheia de vida conforme Chukwu nos mostra através da relação entre relação de Emmett (Jalyn Hall) com Mamie. Emmett (Danielle Deadwyler). Embora jovem, Emmett possui uma confiança que faz com que ele não aja conforme sua idade. Ele é despreocupado e extremamente aéreo aos perigos ao seu redor, coisa que Mamie faz questão de sempre lembrá-lo. Emmett planeja uma viagem para o sul do país para visitar seus primos, mesmo que Mamie seja completamente contra a ideia dele viajar sozinho. Tentando ser mais liberal, com o intuito de fazer com que seu filho possa aprender a se cuidar sozinho, ela aceita a ideia de sua viagem. Mamie expõe para Emmett que as leis no sul são diferentes e que todo cuidado é pouco. Ela explica que Emmett não deve fazer qualquer coisa que possa instigar uma reação ruim dos brancos daquela região, porque lá as consequências para esses atos são mais extremas. É uma situação triste ver algo que deveria ser apenas uma viagem para visitar sua família se torna um teste de sobrevivência, mas essa é a realidade que muitos tiveram que enfrentar ao longo de sua vida. Embora Emmett concorde com o que sua mãe disse, o jovem parece despreocupado com a viagem e com a maneira que vai ser recebido por aquelas pessoas. É o momento mais ingênuo do dele, que parece não possuir qualquer tipo de malícia ou conhecimento da realidade.

Mamie não consegue deixar a preocupação de lado enquanto o menino viaja. A saudade e o medo parecem falar mais alto do que as questões que ela tem que lidar durante o seu dia, como seu serviço e sua relação com seu futuro marido, Gene Mobley (Sean Patrick Thomas). Não existe um minuto do filme que Mamie não pareça estar sendo atormentada pela preocupação que lhe aflige. Os momentos que vemos Mamie angustiada com a situação de Emmett são intercalados com segmentos de sua viagem no sul. Nós vemos Emmett vivendo o que qualquer pessoa da sua idade viveria, mas essas sequências funcionam como um prelúdio para todo o sofrimento que vem a seguir. Qualquer um familiarizado com a história de Emmett Till sabe o destino de tudo aquilo, mas a execução de Chukwu não faz com que essa verdade seja mais fácil. O ato que culminou em seu linchamento é o mais banal possível e uma verdadeira demonstração de todo o perigo que os negros do sul tinham que enfrentar todos os dias. Não existe maneira certa ou fácil de lidar com essa situação, mas Chukwu se mostra completamente dedicada a não mostrar o sofrimento de Emmett. A diretora entende que nesse caso, a suposição é melhor do que a exibição do ato. Nós sabemos o terror e o destino do jovem, mas mostrar aquilo só enfatizaria todo o sofrimento que a população negra sofreu e sofre até hoje, mas o que vêm a seguir consegue ser mais forte e visceral que qualquer ato de violência que Chukwu pudesse mostrar.

Após o ato, nós acompanhamos tudo o que Mamie teve que enfrentar. Enquanto o garoto continua classificado como desaparecido, Mamie faz tudo ao seu alcance para fazer com que ele seja encontrado. Ela entra em contato com políticos para fazer com que a história ganhe conhecimento nacional. Alguns dias após essa movimentação política e jornalística, o corpo de Emmett é encontrado à beira de um rio. A primeira reação de Mamie é a de negar a realidade. Embora tudo indique que o filho dela realmente estava morto, ela parece possuir um pingo de esperança de que aquele não era o seu menino. Mamie enfrenta o luto até onde consegue, dessa vez fazendo de tudo para que o corpo de seu filho seja levado para a cidade em que eles vivem, mas com a chegada do corpo as emoções de Mamie se tornam cada vez mais agudas. Ela grita, chora e sofre em cima do caixão de seu filho. Em uma das cenas mais fortes do ano, vemos ela reconhecendo o corpo de Emmett. O jovem parece completamente desfigurado, mas embora Mamie sinta o terror de seu sofrimento, ela decide não desviar o olhar. É como se ela tivesse que ver para crer que aquilo estava acontecendo. São nesses momentos que a interpretação de Deadwyler se mostra mais forte.

Deadwyler entrega um tour-de-force absoluto em uma das melhores atuações do ano. Todos os seus sentimentos e emoções são completamente crus e viscerais. Não existe um pequeno momento em que a sua atuação seja nada menos que magistral. A maneira com que ela lida com o sofrimento e a força de Mamie é simplesmente milagrosa. Nós vemos diversas camadas de Mamie através de sua atuação. O espectro de emoções com que ela tem que lidar faz com que a sua performance seja multifacetada, suportando diversos sentimentos de uma vez sem nunca parecer sobrecarregada de emoções. Ela possui uma resiliência e determinação ímpar, lidando com toda a injustiça e falhas do sistema jurídico, mas com a esperança de que daquela vez ia ser diferente. Mas não foi diferente. Emmett e Mamie foram mais uma vítima do privilégio que protege os opressores ao invés dos que são oprimidos. Deadwyler lida com a injustiça como um sentimento internalizado. O que ela não diz pode ser facilmente visto através de seus olhos, que são tão expressivos quanto o de Marie Falconetti em “A Paixão de Joana d’Arc”. Em uma cena de no mínimo 5 minutos, vemos Mamie depondo no tribunal que julga o linchamento do seu filho, e o que Deadwyler faz aqui é algo fascinante. Enquanto Chukwu mantém a câmera focada em seu rosto, nós vemos Deadwyler navegar entre todas as emoções possíveis. Ela transborda sentimentos mesmo quando parece tentar não mostrá-los. É como se fosse impossível guardar todas essas emoções só pra ela, então vemos como ela tenta apenas escondê-las para que possa se mostrar forte diante o juiz. Embora seja fácil de perceber que todas as suas falas parecem ser destinadas ao júri, Deadwyler consegue fazer com que a sua mensagem seja ressonante em todas as formas.

Mas nem só de grandes momentos como esse se vive sua interpretação. Talvez os seus maiores momentos venham das cenas mais sutis do filme. Um dos exemplos de como ela consegue internalizar toda a verdade daquela personagem vem logo depois do seu depoimento, quando Carolyn Bryant (Haley Bennett), a responsável pelo linchamento de Emmett, começa a depor e mentir sobre o que realmente aconteceu. Nós vemos o desdém de Mamie de maneira clara. Ela decide sair do tribunal e ir embora e quando perguntada se não vai ia o veredito Mamie responde “Eu já sei o veredito”. A cena é um dos momentos mais impactantes do filme, talvez porque também seja um dos mais verdadeiros. O filme deixa claro que não existe justiça para os negros do sul, mas Chukwu não parece querer mostrar uma situação desesperançosa. 

A direção de Chukwu é a mais refinada que uma história dessas poderia ter. Embora o filme siga a cartilha da maior parte das cinebiografias atuais, não existe nada ordinário na maneira que Chukwu conta essa história. Sua direção é dramática e focada completamente nos sentimentos dos personagens, o que acaba fazendo com que todos os atores possuam um ótimo desempenho. Mas o filme passa longe de ser só um palco para eles. Chukwu mostra como é possível manter sua visão artística mesmo quando o gênero do seu filme é trivial. Não é como se ela tivesse reiventado a roda com sua direção, mas ela foi capaz de ditar os rumos da história de uma maneira bastante autoral. O roteiro do filme escrito por Keith Beauchamp, Michael Reilly e pela própria Chukwu se mantém acima do esperado. A escrita dispensa o tom melodramático da direção, mas isso não quer dizer que uma dessas duas abordagens é uma escolha ruim. A contraposição do roteiro com a direção é justamente o que faz com que o filme realmente funcione. Enquanto a direção mostra todo o sofrimento da maneira mais intensa possível, o roteiro sugere que há mais camadas para aquele sentimento. Talvez o filme fluísse melhor caso decidisse focar no ativismo de Mamie, já que possui diversos momentos que indicam o impacto que ela teve na política dos direitos civis, mas isso não faz com que o filme se torne limitado.

O desfecho poderia ser pessimista caso Chukwu decidisse assim. Não existe um final feliz para a história de Mamie, que morreu sem fazer justiça pelo seu filho, mas a diretora decide não focar no sentimento ruim causado pela injustiça. Chukwu prefere mostrar quão influente a voz de Mamie realmente foi, mesmo que isso não tenha ocasionado em uma grande mudança no país. Sempre que uma tragédia como essa ocorre nós temos a tendência de pensar “talvez com isso as coisas devem mudar”, mas como dito antes, elas não mudam. Chukwu nos mostrou quão cruel e impiedosa a realidade é, mas mesmo assim ela decide terminar o seu filme em um tom positivo. Nós vemos o quarto de Emmett se iluminar conforme Mamie entra nele, fazendo com que o brilho seja tanto que acaba se tornando uma tela branca. Com isso, Chukwu ilumina a tragédia como se tudo aquilo pudesse ser desfeito. Mamie pode não ter visto a justiça pelo seu filho em vida, mas “Till – A Busca por Justiça” faz questão de mostrar que sua história permanece sendo contada.


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