MOSTRA SP – Os Anos do Super 8

Avaliação: 4.5 de 5.

Em “Os Anos do Super 8”, vemos Annie Ernaux totalmente sozinha com suas lembranças. O documentário que marca a estreia da escritora no cinema vem logo depois da adaptação de “O Acontecimento”, onde ela relata uma parte da sua juventude, incluindo alguns abortos motivados por gravidezes indesejadas. A Annie Ernaux de “Os Anos do Super 8” é completamente diferente da sua imagem recriada em “O Acontecimento”. Aqui acompanhamos fragmentos da vida da escritora e de sua família enquanto eles viajam e crescem diante dos nossos olhos. As gravações realizadas pela câmera Super 8 levam tanto Ernaux quanto o espectador para momentos cotidianos do passado da escritora, que relembra quão simples sua vida era durante aquele momento. 

As imagens mostradas ao longo do documentário foram gravadas entre 1972 e 1981. Nelas vemos os momentos de intimidade da escritora, enquanto ela narra essas lembranças com uma comoção estarrecedora. Existem tons de melancolia na maneira em que Ernaux exibe a reconstrução de seu passado. É muito difícil olhar e perceber quanta vida foi deixada para trás, ainda mais quando colocamos na balança que eventualmente todas essas memórias irão deixar de existir. Essa questão da memória e do passado parece afligir Ernaux, o que insinua que essa é a verdadeira razão pela qual ela decidiu realizar esse projeto.

Nós vemos quanto Ernaux trata suas viagens como um ato político, porque existe toda uma questão social que parece mover a escritora para esses lugares. Ao mesmo tempo em que ela recorda as questões familiares que acontecem durante essas viagens, ela também toma seu tempo para expor as questões sociopolíticas e culturais dos países em que essas memórias aconteceram. Em certos momentos esses dois aspectos parecem se mesclar, visto que Ernaux não consegue separar os indivíduos dos lugares em que eles estão inseridos. Existe uma consciência de classe nos seus relatos, o que faz com que suas declarações e sentimentos referentes às questões políticas desses lugares não soe como uma atitude egocêntrica. Apesar desses aspectos trazerem uma grande carga simbólica, as intenções de Ernaux nunca soam como um projeto de vaidade. É nítido que ela realmente se importa com as pautas que menciona ao longo de seu filme, mas isso não é novidade para aqueles que são próximos do seu trabalho como escritora. 

Apesar do aspecto político tornar o filme mais relevante, o que realmente faz com que o documentário funcione são os dilemas pessoais que Ernaux expõe ao público. Questões como a maternidade, o matrimônio e o luto são alguns dos temas abordados por Ernaux, e eles funcionam em total sintonia porque são ligados diretamente às memórias. As filmagens de seus filhos fazem Ernaux refletir sobre o seu papel na vida deles. Os filhos só precisam dos pais quando são crianças, o que faz com que muitas vezes o contato entre os dois diminua conforme eles cresçam. Existe um questionamento sobre o que essas lembranças vão significar para eles em seus futuros, e Ernaux parece fazer tudo a sua disposição para fazer com que eles não esqueçam daqueles momentos. Em uma parte do filme, Ernaux se lembra como e onde conheceu seu marido, mas os momentos que viveram juntos são agridoce na visão da escritora. “Eu era supérflua em sua vida”, diz Annie sobre seu então marido, Philippe Ernaux. O remorso que ela carrega desses momentos acabam frustrando suas memórias, deixando um gosto ruim na boca ao lembrar das circunstâncias que passaram juntos, sejam elas bons ou ruins. Ela desconstrói a imagem da família perfeita e da instituição do casamento e mostra como tantos acontecimentos que nos marcam podem simplesmente parar de importar de uma hora pra outra. Por fim, a documentação dessas memórias também carrega o peso das pessoas que se perderam nos anos em que sucederam essas ocasiões. Ernaux explica que, ao documentar um pedaço da vida daquelas pessoas, ela eterniza as suas memórias, por isso a exibição desses momentos é tão importante para ela. Nesses sessenta minutos de duração é como se ela pudesse reviver essas recordações mais uma vez.

“Os Anos do Super 8” serve como uma pequena mostra da genialidade de Annie Ernaux, seja pela maneira com que ela reconstrói uma parte de sua vida ou pela maneira com que ela consegue inserir questões políticas e sociais relevantes na sua obra. Ao deixar as suas lembranças viverem novamente, Ernaux é capaz de criar um trabalho maduro e atraente, que tem muito mais a dizer do que aparenta. Talvez o passado tenha realmente ficado para trás, mas aqui Annie consegue recriar as emoções causadas por ele.


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