Com a revogação de Roe vs Wade, o foco em cima de filmes que retratam experiências de aborto ficou maior do que nos anos que antecederam esse retrocesso social. Só em 2022 já tivemos dois ótimos filmes sobre o tema, como “Lingui, The Sacred Bonds” de Mahamat-Saleh Haroun e “Happening” de Audrey Diwan e, embora “Call Jane” não consiga atingir o mesmo nível desses projetos, a visão de Phyllis Nagy é útil no que se diz respeito a retratar histórias de sororidade de maneira singela. A história acompanha Joy (Elizabeth Banks), que ao ser diagnosticada com uma gravidez de risco tenta, a todo custo, terminar aquela gestação. Ao ser impedida pela justiça de realizar um aborto legal, Joy se vê envolvida com um grupo de mulheres chamados “Call Jane”, que trabalham como uma rede secreta para ajudar gestantes em situações como essa. Embora Joy não possua interesse em ajudar o grupo, Virgínia (Sigourney Weaver) convence ela de que o trabalho que elas realizam é uma questão social extremamente necessária. Joy, que não possuía qualquer tipo de aspiração ao levar sua vida de esposa, mãe e dona de casa, logo começa a trabalhar junto dessas mulheres para ajudar aquelas que mais precisam. A questão moral de Joy é um dos focos principais de Nagy, que lida com a história de maneira sincera, sempre pontuando que a importância das ações realizadas por aquele grupo de mulheres era maior do que qualquer questão pessoal que elas lidavam para fazer com que aquele trabalho se realizasse.
Ao longo de suas duas horas de projeção, a história perde fôlego e começa a andar em círculos por um grande período de tempo, fazendo com que toda a experiência se torne algo extremamente cansativo. A abordagem de Nagy não é revolucionária, muito menos pessoal, visto que a diretora segue com a construção da história da maneira mais convencional possível. Nagy não traz nada de novo para o tema, demonstrando pouco interesse nas nuances que cada personagem poderia ter, e acaba sempre pontuando quão genérico e raso a escrita do filme realmente é. No entanto, a direção de Nagy funciona nas cenas onde vemos Joy nos seus momentos mais vulneráveis e solidários. A diretora consegue desenvolver bem o sentimento de suporte que Joy precisa ter quando lida com os medos e inseguranças de si mesma ou das pacientes da clínica. Na verdade, as cenas em que observamos o terror que as pacientes passam durante o procedimento são os momentos em que o filme mais soa genuíno. É visível que Nagy se importa com os sentimentos que essas mulheres passam ao longo da gestação. O medo, a vontade de ser amada, a insegurança e o desejo de viver são abordados da maneira mais funcional possível, criando um laço forte entre o espectador e essas mulheres, mesmo que pouco seja dito sobre suas questões interiores.
O longa que abre com uma cena de Joy na rua ouvindo gritos de “o mundo todo está assistindo”, referente ao protesto anti-guerra do Vietnã em Chicago, parece ter medo de se aprofundar nessas questões sociais que marcaram os anos 60 dos Estados Unidos. O Partido dos Panteras Negras só é mencionado brevemente em um diálogo entre Gwen (Wunmi Mosaku) e Virgínia, onde Gwen questiona o motivo pelo qual eles negam ajuda a membros do partido. É no mínimo estranho que um filme que tenta a todo momento ser progressista e revolucionário não consiga atingir nenhum dos dois objetivos. É compreensível que Nagy queira abordar somente o tema de aborto, mas é impossível falar disso sem compreender e aceitar que o que elas estam fazendo também era um trabalho político. O filme parece omisso a esses acontecimentos, como se Nagy rejeitasse olhar para o quadro geral que afetava o país. Pouco se fala sobre quanto os direitos das mulheres foram negligenciados durante todo esse período. Embora possua contradições e uma adaptação que foge dos reais acontecimentos, a série “Mrs. America” é um olhar muito mais interessante e completo sobre tudo que aconteceu durante essa época.
No que se diz sobre os trabalhos dos atores do filme, Elizabeth Banks é perfeitamente escalada como Joy, se encaixando no papel de “dona de casa” e fazendo dele uma de suas melhores atuações. Sem precisar de qualquer tipo de grande cena, Banks é sutilmente compassiva durante os momentos mais delicados da personagem. Ela consegue se manter em um lugar acima da qualidade do filme, que apesar de ser um singelo palco para qualquer atriz, não traz aspectos muito interessantes para sua carreira. Outros atores como Sigourney Weaver, Chris Messina, Wunmi Mosaku e Kate Mara são desperdiçados graças a um roteiro que não se interessa em fazer de nenhum deles um instrumento para o filme.
Nagy pode não ter muito a dizer além do que é mostrado na tela, mas é notável que ela abraçou o projeto com as melhores intenções. “Call Jane” não chega a ser um desastre, talvez porque não seja interessante o suficiente para ser considerado um. O filme acaba como um trabalho sensato por parte de Banks, mas a falta de personalidade e demonstração de qualquer veia artística de Nagy torna os acontecimentos retratados pela diretora em uma experiência rasa e inexpressiva, que tende a ser esquecida nas horas que sucedem a exibição do filme.