Festival do Rio – A Couple

Avaliação: 4 de 5.

Carregado de culpa, remorso e invalidação, “A Couple”, novo filme de Frederick Wiseman, é uma breve mas complexa visão da vida de uma mulher que, ao buscar compreensão e afeto, só recebe indiferença e ingratidão. A história de Sofia Tolstói, mulher de Leon Tolstói, é contada através de cartas escritas por ela para seu marido. Nos relatos nós acompanhamos e sentimos todo o peso que ela carregou ao longo de sua vida, onde foi completamente destratada e ostracizada pela pessoa que mais admirava. Sofia relata sua história de uma maneira com que faz parecer que, ao longo de todos os anos em que esteve casada com Leon, ela foi apenas um fardo e uma pedra em seu caminho. O afeto e a paixão que os dois possuíam se perderam no passado, e o que restava era apenas uma chama apagada de um amor que, por muito tempo, se manteve aceso apenas pela necessidade de sentir que existe alguém que esteja lá para você, seja pelos poucos momentos bons ou como um para-raios para suas próprias frustrações.

Nos seus sessenta e três minutos de duração, Wiseman utiliza trechos de cartas de Sofia para mostrar os diversos acontecimentos e sentimentos que marcaram a história de uma mulher que foi reduzida ao papel de esposa e mãe. Nathalie Boutefeu lida com as nuances e o ressentimento da personagem de uma maneira tão pessoal que é como se ela conhecesse Sofia profundamente, de corpo e alma. Apesar de estar interpretando uma versão francesa de Sofia, em momento algum sua atuação parece despreocupada com a verdade da personagem. A escolha de dar uma nova face a ela ao invés de simplesmente recriá-la é um dos maiores acertos de Wiseman como diretor. Os seus sentimentos são universais e quebram qualquer barreira construída pela linguagem. A sua essência transborda através da interpretação de Boutefeu, que dá uma fragilidade e resiliência ímpar para a sua versão de Sofia. Desde a linguagem corporal até a sua potência vocal, tudo é construído em perfeita harmonia pela atriz, que é encarregada de realizar um show de uma-mulher-só.

As quebras que Wiseman insere entre um monólogo e outro são responsáveis por trazer momentos de observação e contemplação para o filme. Se os sentimentos de Sofia são ditados pelas suas próprias palavras, as imagens capturadas por Wiseman são uma força da natureza que tem muito mais a dizer do que aparentam. Ao tratar de questões existenciais sobre a importância que nós temos nas vidas uns dos outros e sobre o motivo pelo qual nós fazemos o que fazemos, Wiseman mostra cuidado ao questionar a importância de tudo que está ao nosso redor. A vida sem um propósito é apenas sobrevivência, mas tanto Wiseman quanto Sofia querem mais do que isso. Sofia se recusa a ser apenas mais um objeto inanimado no universo, e o fato de Leon a tratar como um é algo imperdoável para ela. A infelicidade e solidão de Sofia são retratadas de uma maneira complexa, porque por mais que ela demonstre esses sentimentos, o seu amor por Leon a impede de seguir com a sua vida. Embora não exista qualquer consideração por parte dele, Sofia parece conformada com o papel de coadjuvante pelo qual ela interpretou por toda sua vida, mas isso não faz dela uma pessoa fraca. A resiliência é o que faz com que ela continue vivendo com um propósito, sem sucumbir no abismo do esquecimento para qual Leon a empurra.

Se a base de um documentário é a narração de eventos reais, o que vemos ao observar Boutefeu proferindo as palavras de Sofia nada mais é do que uma exposição dos seus sentimentos. A maneira crua e genuína que Wiseman utiliza para transmitir a sua história claramente vem do seu histórico com documentários, porque o que observamos em “A Couple”, apesar de sua estrutura quase cênica, é um relato real de uma pessoa que realmente existiu. Mas o que Wiseman faz aqui é muito maior que simplesmente recriar palavras de uma carta. Ele dá voz e protagonismo a uma mulher que nunca teve alguém lá por ela e, embora não esteja mais aqui para ver isso acontecer, suas palavras foram eternizadas para ajudar qualquer um que sinta o mesmo.