Qual é o sentido de ser uma estrela? Com um viés existencialista, o longa de Andrew Dominik mostra a anônima Norma Jeane sendo devorada pelos conflitos dualistas com Marilyn Monroe, que a aprisiona ao ad aeternum da incompletude. Seria a solidão um componente fundamental do estrelato, ou, teria sido Marilyn Monroe apenas mais uma vítima do monstro da fama?
A fama persegue loiras. Em 1996, a atriz Pamela Anderson foi uma das vítimas. A protagonista da série de TV, ‘Baywatch’, estava no auge da carreira. Os produtores do show não estavam interessados em vê-la explorar o próprio alcance dramático. Eles estavam mais preocupados nos picos de audiência que iriam obter explorando o corpo da atriz. A sexualização em torno de Anderson foi tão absurda, que nunca houve preocupação com a vida pessoal da atriz, apenas com sua vida sexual. Quando um homem vaza a sex tape de Pamela Anderson e Tommy Lee, toda a indústria tenta tirar vantagem financeira da atriz. E como fizeram isso? Usando o corpo de Pamela como um verdadeiro negócio. Após o fato, a atriz passou a enfrentar uma carreira turbulenta marcada pelo título de ‘símbolo sexual’. Um título que apesar de representar o empoderamento sexual, passou a limitar a carreira promissora de Pamela Anderson no cinema. Vimos mais uma loira ser destruída pelo monstro da fama, ou melhor, pelos homens e sua poderosa indústria maquiavélica.
Inspirado no livro de mesmo título de Joyce Carol Oates, lançado em 2000, ‘Blonde’ tem início com o retrato de um homem na parede. O pai de Marilyn, suspostamente famoso, abandonou a família pelo glamour hollywoodiano. Faíscas surgem em cena, Los Angeles está em chamas. Em uma busca obsessiva pelo pai da filha, Gladys (Julianne Nicholson), que está péssima, passa a descontar as frustações na filha, a violentando o tempo todo. Marilyn Monroe é abandonada. Sem pai e nem mãe, ela precisou crescer sozinha.
Enquanto Marilyn Monroe canta ‘Every Baby Needs a Da-Da-Daddy’, um pulo temporal acontece. Nos deparamos com uma Norma Jeane vulnerável, que estampa a capa de diversas revistas e faz audições para grandes estúdios. A transferência paterna não se concentra em apenas um, mas em vários homens. Isso não é tão bonito quanto parece. Na mesa dos homens, o esforço de Marilyn nunca é reconhecido. Ela passa a se questionar o tempo todo, mas é silenciada por constantes abusos.
Em um salão escuro com um grupo de atores, ouvimos os gritos desesperados de Norma Jeane. Ela é um animal indefeso em sofrimento, exceto quando é chamada de Mrs. Monroe. Em mais uma audição, experienciamos um monólogo de tirar o fôlego. Ana de Armas parece ter Marilyn Monroe com ela. É impressionante observar cada detalhe em cena, Armas não incorpora apenas a baby voice de Monroe, mas também sua desenvoltura inocente – com uma brandura invejável de tão bem apurada.
Enquanto nos impressionamos com a entrega de Ana de Armas; na ficção, durante a audição de Marilyn, os produtores se espantam com a profundidade que ela conduz o próprio método de atuação. É tão injusto que chega a ser engraçado. Ela é desmerecida pelos homens, obviamente. ‘Blonde’ tira sarro disso, deixando exposto que as nádegas de Marilyn chamam mais atenção do diretor do que a sua entrega. Nas lentes do diretor Andrew Dominik, a atriz Ana de Armas não só parece com Marilyn, ela é Marilyn. Ela incorpora o ícone de forma poderosa e chega a assustar o quão dominante ela está em cena. Estar parecido não é o único atributo necessário pra a entrega de uma boa interpretação biográfica.
Armas é pura excelência na entrega, é delicada, sútil e extática. Longe de beirar às últimas bizarrices cartunescas que alcançaram ao Oscar como Rami Malek (‘Bohemian Rhapsody’) e Jessica Chastain (‘The Eyes of Tammy Faye’).
É incontestável o fato de que Marilyn Monroe está em busca de um sentido em todo o longa. Ela procura preencher o vazio o tempo todo. A aprovação materna se torna uma motivação que nunca é alcançada, impulsionando o início da libertação sexual de Marilyn. Uma das sequências mais emblemáticas de ‘Blonde’ é o ménage à trois de Monroe com Charlie Chaplin Jr. e Edward Robinson. A cena é tão artística, que é apaixonante. Dominik usa de um artificio visual para metaforizar o preenchimento do vazio de Marilyn. É muito interessante. É o único momento do longa que ela realmente parece feliz.
O diretor Andrew Dominik conduz o livro como se fosse uma fábula pseudo existencialista. As sequências reflexivas de ‘Blonde’ são audaciosas, porque nós vemos a figura de Marilyn se questionar sobre o sentido da vida. E ela mesma vai ressaltar sobre o quão solitária é a vida de uma estrela. É como se Dominik estivesse dirigindo sua própria versão de “The Tree of Life (2011)”, utilizando a história de Marilyn Monroe como cenário. Inclusive, o diretor de fotografia, Chayse Irvin, entrega um esplêndido trabalho, o filme é esculpido de autenticidade estética. A fotografia é louvada pela trilha sonora de Nick Cave e Warren Ellis, estamos de volta à era de ouro de Hollywood.
Indubitavelmente, chega a ser sádico o quanto o Dominik objetifica Marilyn Monroe em ‘Blonde’, mas acaba fazendo sentido dentro da concepção fabulista. Outro longa que se apropriou de artifícios imaginários para retratar uma pessoa real foi “Spencer” de Pablo Larraín, lançado em 2021. No filme, a Princesa Diana, interpretada por Kristen Stewart, tem diálogos com um casaco. Além disso, o diretor constrói o filme dentro de uma atmosfera de horror psicológico por meio do aprisionamento da Princesa, que consequentemente, se automutila para avaliar o sofrimento mental em virtude da necessidade de se libertar. Sim, nos dois filmes, para as duas loiras, o grande estorvo foi a fama.
O desejo de maternidade de Marilyn, que a foi tirado todas as vezes, evidencia o vazio existencial da atriz que por mais fosse famosa, era solitária. Os problemas com a mãe, o abandono do pai e dos homens que amou foram cruciais para a trágica solidão da atriz. O sentido de uma estrela só pode ser sentido a partir do momento que Marilyn nos deixa em ‘Blonde’. Após horas no brilhantismo da presença de Ana de Armas, o longa acaba com o dualismo sobreposto de Norma Jeane e Marilyn Monroe, as duas viram uma só, como sempre foram. E por fim, o ícone loiro desencarna. Mas ela nunca tem sua estrela apagada, é isso que ‘Blonde’ quer dizer.
A fama de Marilyn Monroe foi o seu castigo. Ainda que incomode, ‘Blonde’ faz questão de reafirmar isto todas as vezes. Muitas das críticas atacam a abordagem do diretor Andrew Dominik, o acusam de uma visão sexualista em torno da figura de Marilyn, e também, de uma visão masoquista em retratar a trajetória da atriz como uma versão de “Passion of Christ (2003)”, de Mel Gibson.
A extremidade visual de ‘Blonde’ é mais do que provocante, é excitante, e o diretor sabe disso. Não existe uma ordem linear, nunca se sabe o que acontece em seguida. Não existem evidências de que Marilyn Monroe e John F. Kennedy tiveram um caso, mas a mídia fez este fato se tornar uma realidade. Num mundo masculino, o maior prejudicado pelo “boato” não foi Kennedy, e sim, Marilyn. Dominik põe Kennedy como um homem rude e abusador, como uma figura de representação a própria mídia sensacionalista. Sabe-se que para a mídia não existem limites. Em 2007, Britney Spears foi perseguida pela fama, isso a aprisionou em uma tutela de 13 anos. Quem aprisionou Britney Spears não foi o seu surto, foi a indústria. A mídia via a degradação da artista como uma máquina de dinheiro e eles passaram a estimular isto.
‘Blonde’ não está querendo sujar uma imagem. Durante a polêmica cena de sexo com JFK, a própria Marilyn questiona “Quem me trouxe aqui?”. Ela não sabe o que está fazendo naquela narrativa, ela simplesmente continua e age como se estivesse atuando. Dominik está querendo expressar o quão usada Marilyn foi. Ela é assistida, usada por todos, mas ninguém permite que ela também os use. O diretor abraça esta ideia de criticar a objetificação da atriz, a objetificando, da mesma forma que a indústria fez durante todos esses anos. É uma escolha que pode soar infeliz, mas que gera um efeito necessário no público: o desconforto.
Nós vivemos uma sociedade na qual a sexualidade feminina é vista com desprezo, mas são poucos os que se rebelam a isto. Inclusive, ‘Blonde’ já foi chamado de filme pornô pelas mesmas pessoas, que não usam sua visão crítica para tirar a máscara do ‘óbvio’, e passam a se preocupar com um lado só: o da fama. A imagem midiática de Marilyn Monroe ficaria suja com o público porque o filme a retrata como uma mulher que vive a própria sexualidade? Esse pensamento é pequeno. Volto a falar sobre Ana de Armas, talvez ela não tenha noção de que entregou uma das melhores interpretações da década. Se as pessoas não estão preparadas para refletir, que comecem. O cinema é uma ferramenta de reflexão e impacto. O filme reforça, mostrando uma sala de cinema que começa vazia, e conforme começa a lotar, o que passa a ser exibido é a vida pessoal da atriz. Tendo em vista que o ‘Blonde’ não seja um filme biográfico de estrutura convencional, não se supõe que seja um filme fácil. Pontos subversivos como a nudez, acabam causando impacto no público por estar presente bem mais do que o normal. Dominik adota uma abordagem satírica e subversiva que parece criticar o seu próprio trabalho, e isto é insanamente bom.
É bem evidente que o diretor impõe um olhar poético e complexo na obra, como é vista na questão dos abortos, que se tornam tão recorrentes e trágicos que beiram ao ridículo. Obviamente muitos dos fatos sequer aconteceram, mas são provocantes o suficiente para despertar discussões sobre liberdade artística. Por mais polêmicos que filmes possam ser, os filmes provocativos são como uma injeção de entusiasmo numa indústria que tem sido previsível e entediante nos últimos anos. Então, sim, ‘Blonde’ merece uma chance de brilhar.