A estreia de Manuela Martelli como diretora é um complexo encontro de classes durante tempos de opressão. O filme se passa em Las Cruces, uma cidade do Chile, durante o terceiro ano da ditadura de Pinochet. Acompanhamos Carmen (Aline Küppenheim) em uma viagem para sua casa de praia com o resto de sua família. Ao chegar lá, o padre Sanchez pede a sua ajuda para cuidar de um suposto bandido local chamado Elías (Nicolás Sepúlveda), que está severamente ferido. Apesar de no começo não sabermos o real motivo dos ferimentos de Elías, Martelli sugere desde o começo do filme que os opositores de Pinochet estão sendo perseguidos. Na primeira cena vemos Carmen escolhendo uma cor de tinta para reformar sua casa, e aos fundos, escutamos uma pessoa sendo levada pela polícia. O comerciante local fala que naquela semana já haviam acontecido diversas situações como aquela, mas ninguém se arrisca a questionar o acontecimento.
Carmen, que começa a se dispor a ajudar Elías cada vez mais, se vê atraída pelo desconhecido. Além de ajudá-lo a tratar de seus ferimentos, ela começa a se interessar por sua história, até que acaba descobrindo que ele é um opositor foragido. Disposta a fazer qualquer coisa para ajudá-lo a escapar, Carmen se coloca no centro de uma linha de proteção anti-Pinochet.
A construção ao redor da relação entre Carmen e Elías é cheia de camadas, porque em momento algum fica evidente o real motivo de toda aquela entrega de Carmen. Seria atração física? Um genuíno sentimento de dever? Uma maneira de sair da monotonia da vida burguesa que ela leva? Martelli não responde nenhuma dessas perguntas, pelo contrário, deixa elas abertas de maneira proposital para que possa trabalhar em cima da ambiguidade da personagem. As reais motivações de Carmen não são interessantes para a diretora, que prefere navegar pelas lacunas e confusão causadas pelos sentimentos da sobrevivência humana. A direção de Martelli dá um tom de suspense a toda narrativa. O constante medo de que Carmen seja descoberta pela polícia é o que faz com que a trama se movimente de maneira dinâmica, sem nunca estagnar em alguma das questões mais delicadas.
Aline Küppenheim tem o grande dever de fazer o filme funcionar e, pra sorte da diretora e do público, ela alcança a grandeza emocional que a personagem requer. Küppenheim transmite com proeza o sentimento enfadonho que é a vida da alta classe. Em um país dividido pela ditadura, Carmen poderia muito bem se abster de qualquer ação política, mas prefere manter suas convicções e fazer o que acha certo, e Küppenheim consegue vender bem a vontade de mudança da personagem. Nos momentos de ternura vemos Carmen no seu estado mais vulnerável, disposta a fazer tudo possível para ajudar o foragido. Küppenheim também atinge as notas certas nos momentos mais dramáticos, principalmente na cena final do filme, onde todo o terror do regime de Pinochet parece atingi-la como um tijolo. A devastação é tanta que a personagem não consegue se conter, e Küppenheim é incrivelmente comovente.
A questão da ditadura de Pinochet é um tema que, apesar de relevante e necessário, não consegue escapar das obviedades do cinema chileno. A maioria dos filmes do país parecem sempre lidar com as mesmas questões referentes ao regime ditatorial, o que acaba tornando ‘1976’ em apenas mais uma contribuição para esse universo cinematográfico. É claro que isso não torna o filme necessariamente em algo batido, graças a Martelli que consegue transformar uma história aparentemente simples em algo com real potência política, fazendo com no final, o filme seja mais do que um simples thriller político, mas também uma incrível prova da empatia humana e do senso de justiça que afeta todas as classes sociais.