Happening

Avaliação: 4.5 de 5.

Desafiante e visceral, “Happening” é um drama sobre o aborto que opta por caminhos violentos na busca pela libertação feminina.

Na França dos anos 60 acompanhamos Annie (Anamaria Vartolomei), uma jovem estudante que tem os seus sonhos e ambições atrapalhados por uma gravidez indesejada. Para poder seguir adiante com a sua vida, Annie procura meios de interromper a gestação. Lidando com questões sociais, o caminho até a liberdade parece fora de alcance para ela, que passa por várias adversidades durante as tentativas de aborto, mutilando o próprio corpo para pôr um fim naquela situação.

O trabalho feito pela diretora Audrey Diwan é espetacular e transcende as barreiras narrativas e morais de filmes do gênero. Diwan constrói uma obra densa e violenta, utilizando de enquadramentos fechados para criar a sensação de aprisionamento que Annie se encontra. Diwan acompanha Vartolomei como uma musa, criando o filme perfeito para que a atriz mostre o seu alcance dramático. Ela lida com questões morais com delicadeza e transparência, mostrando que o processo de interrupção da gestação é cansativo, destrutivo e excruciante. As cenas em que Annie experimenta métodos caseiros de aborto são gráficas e aterrorizantes, mas o que Diwan busca aqui não é o shock value, e sim uma maneira de mostrar como o processo é violento ao corpo feminino. Inclusive, o corpo feminino é uma das ferramentas principais da direção de Diwan, que utiliza deles sem qualquer tipo de manipulação ou tentativa de sexualização. O filme em essência é sobre o descobrimento feminino, seja através do prazer ou da dor.

Com a direção magnífica de Diwan é difícil acreditar que uma atuação fraca pudesse sair desse filme, mas Anamaria Vartolomei conseguiu transcender todas as expectativas possíveis. A atriz entregou uma performance visceral, seja de forma física ou emocional. Os olhos expressivos de Vartolomei falam por si só e são responsáveis pelos melhores momentos da atriz no papel. Nessas cenas ela é capaz de passar emoção, frustração, dor e medo com a mesma intensidade, sem errar uma nota sequer. É o tipo de papel que faria de qualquer atriz em Hollywood uma estrela. O mais impressionante na atuação de Vartolomei é a maturidade da atriz, que apesar de jovem controla perfeitamente as emoções e sentimentos da personagem e simplesmente some no papel, fazendo com que o espectador se questione se todo aquele sofrimento é real.

O filme levanta questões sociais pertinentes sem soar enfadonho. A relação entre a mulher e a sociedade é muito bem explorada, fazendo com que o filme seja capaz de criar discussões muito mais interessantes do que simplesmente levantar o questionamento entre o inadmissível e o aceitável quando o assunto é o aborto. A gravidez indesejada de Annie atrapalha o seu desejo e a sua ambição de conseguir uma vida melhor através do estudo, e Diwan sabe muito bem como lidar com o assunto. A libertação feminina não é só um assunto político, é também um assunto sobre classe social. Annie não poderia se dar ao luxo de ter aquele filho porque além de toda a questão emocional envolvida ela não tem condições financeiras de conciliar o estudo e a vida como mãe, fazendo com que os seus sonhos ficassem fora de alcance e com que o seu futuro fosse uma incerteza.

Filmes sobre o aborto e suas condições tem sido mais constantes com o passar dos anos. Exemplos como ‘Never Rarely Sometimes Always’ e ‘Lingui: The Sacred Bonds’ mostram que o tema tem se tornado algo mais aceitável diante a sociedade, fazendo com que o debate sobre o assunto seja mais recorrente e relevante. “Happening”, assim como os outros citados, merece um espaço para debate, se não como um ótimo exemplo de abordagem de temas sociais, pelo menos como uma grande conquista cinematográfica, seja pela direção visceral de Diwan ou pela entrega sublime de Anamaria Vartolomei.