‘House of Gucci (2021)‘ é absurdo, divertido e sujo. O novo filme de Ridley Scott retrata a família patriarcal por trás da grife italiana Gucci e como fatidicamente foi preciso apenas uma mulher para desestabilizar a pirâmide da poderosa família.
Num palácio art deco de alguma família rica de Milão, Patrizia Reggiani (Lady Gaga) e Maurizio Gucci (Adam Driver) se conhecem. Parte de uma família simples, consideravelmente bem de vida, Patrizia não hesita em demonstrar surpresa ao ouvir Maurizio revelar que seu sobrenome é Gucci. A partir daí, ela nunca mais largou de seu pé. Amor ou interesse? Talvez, os dois. Afinal, Maurizio é tímido, desajeitado e o único herdeiro de Rodolfo Gucci (Jeremy Irons), e caso seu pai faleça, ele será um dos escolhidos para assumir o trono do império da Gucci. O Maurizio de Adam Driver é encantador, é um homem de poucas palavras, o que soa misterioso. Encantada por Maurizio, a Patrizia de Lady Gaga não desiste do que quer e continua seguindo seus instintos, como faz o filme todo. Ela é apaixonante, sua impulsividade é frenética e excitante.
O começo de ‘House of Gucci‘ é dinâmico, o que destoa do restante do filme. Os dois se mergulham rapidamente em um romance intenso, o que deixa o tom do filme ágil e envolvente demais. Pressionado por seu pai, Maurizio chega ao ponto de fazer sacríficios por amor à Patrizia, que também sacrifica-se pelo jovem. A química entre Lady Gaga e Adam Driver é inexplicável, e isso fica mais do que claro na memorável cena de sexo selvagem que antecede o casamento de Patrizia e Maurizio.
Após o corte intencionalmente cômico, o instintivo romance novelesco de Patrizia e Maurizio acaba no altar ao som de ‘Faith (1987)’de George Michael. Um dos momentos de ‘House of Gucci‘ que a escolha musical pareceu no mínimo duvidosa, mas que por fim, acabou apontando qual era o tom de condução de Scott para o longa. ‘Sono Bugiarda (1967)‘ de Caterina Caselli que foi usada em uma cena aleatória com Maurizio teria funcionado melhor no corte, até por uma questão cronológica, pois o casamento ocorreu em 1972.
Com a repercussão do casamento de Maurizio, seu tio Aldo Gucci (Al Pacino) se espanta com o ocorrido e procura por Rodolfo, que se mostra totalmente contra a atitude do filho. Com intenção de reunir os laços familiares, Aldo convida Maurizio e Patrizia para sua festa de aniversário nos alpes italianos. Com sequências bem filmadas das luxuosas mansões da Itália, Ridley Scott cria uma atmosfera de riqueza impressionante, e isso não é apenas com a ambientação, mas também com os personagens do elenco.
Como quando conhecemos Paolo Gucci (Jared Leto), nós nos deparamos um homem excêntrico ostentando seus relógios banhados a ouro e seus ternos feitos de linho e seda, mas que protesta contra o fato de sua própria família nunca ter acreditado em seu talento como designer. Jared Leto está completamente entregue ao papel, é bizarro como Paolo consegue ser um alívio cômico aqui, já que na maior parte dos cenários ele é um colecionador de inúmeros e deprimentes fracassos. A transformação do ator é incrível, e o seu texto é o mais escrachado de todo o elenco, é como se Scott estivesse jogando na cara de cada espectador quais eram suas intenções com ‘House of Gucci‘, assim como fez em ‘The Counselor (2013)‘ e ‘All the Money in the World (2017)‘.
Assim como Paolo Gucci é desmerecido por ser um “grande idiota”, segundo o seu pai Aldo, os negócios da Gucci não são para mulheres. O que faz Patrizia ser descreditada diversas vezes pela família: a primeira por não ter “oficialmente” nascido uma Gucci; a segunda por ser uma mulher, o que é suficiente para Maurizio ignorar a influência da esposa em transformá-lo um homem de negócios. Lady Gaga é surpreendentemente o espírito do filme, é impossível tirar os olhos dela em tela. Gaga é feroz e insana como Patrizia, ela rouba a cena como Ginger McKenna de Sharon Stone em ‘Casino (1995)‘ de Martin Scorsese. Ela extrai todas as nuances de Patrizia Reggiani, descendo do céu ao inferno junto com a personagem, o que é incrível, visto que a artista possui apenas dois filmes como protagonista. Não é possível enxergar outra atriz neste papel, ela entrega performances como se fosse uma atriz já consagrada. Na realidade, ‘House of Gucci‘ é um filme de estudo para atuações. Lady Gaga, Adam Driver, Jared Leto, Al Pacino, Jeremy Irons e Salma Hayek, cada um tem sua glória no filme de Ridley Scott. Por mais o personagem de Adam Driver seja o menos atrativo, o ator está consistente em sua interpretação. Sua semelhança com Maurizio é admirável, e é deprimente assistir o personagem se entregar à ganância e se automutilando até o fundo do poço.
Um fator interessante de ‘House of Gucci‘ é como a morte é algo que é propositalmente banalizado por Ridley Scott. O próprio roteiro de Roberto Bentivegna e Becky Johnston deixa isso bem claro, como nas primeiras cenas de Patrizia, onde a jovem faz piadas sobre morte com seu pai e até com Maurizio. Este ponto fica ainda mais evidente quando Maurizio e Patrizia se encontram com Rodolfo Gucci (Jeremy Irons) pela última vez, onde ele descobre que é avô de Alessandra. Rodolfo pede perdão à Maurizio prometendo inclui-lo novamente em seu testamento milionário, e em seguida, comemora que seu neto não seja um homem.
Logo mais, um corte brusco acontece, mostrando Rodolfo Gucci (Jeremy Irons) já morto. Uma clara alusão ao futuro poderio de Regianni, que mais tarde, tomaria as rédeas da família Gucci. Não é a primeira vez que Scott trabalha com este tipo de sátira, o diretor banaliza elementos mundanos como vida, sexo, religião, riqueza em suas obras. Em ‘House of Gucci‘ vemos uma poderosa aristocracia em volta de um sobrenome “tão sedutor”, que mesmo repleto de sujeira e corrupção, é impenetrável. Patrizia nunca conseguiu ter o sobrenome, e mesmo matando Maurizio, ela não teria. A última fala de Rodolfo no longa evidencia bem à esse fato.
Em 2013, RidleyScott usou elementos parecidos em ‘The Counselor‘, um filme que teve sua recepção prejudicada por críticas negativas em torno de seu ritmo, sua direção e um roteiro divisivo e frio de Cormac McCarthy.
Em ‘Counselor‘, Ridley Scott cria um mundo onde a ganância é a religião de todos personagens, ditando os passos de cada um deles. O longa tem um olhar nilista, sempre mergulhado em uma inevitável e recorrente negatividade.
O tom penoso do excêntrico ‘The Counselor‘ contamina toda atmosfera cinematográfica, sendo assim, as situações sutis do longa são verdadeiros ciclones. Um exemplo disso, é quando a personagem de Cameron Diaz questiona à personagem de Penélope Cruz se ela gostaria de saber o valor do seu anel de noivado. O texto implícito do roteirista Cormac McCarthy não se refere ao literal valor da joia, mas aos meios violentos e tempestivos que trouxeram a joia até as mãos de Penélope Cruz. O mesmo acontece em ‘House of Gucci‘, onde o jogo de poder e corrupção é avassalador, a ponto de destruir toda uma família por um legado.
Muitas pessoas não irão gostar de ‘House of Gucci‘ e sequer vão entender a verdadeira intenção de Ridley Scott com esse projeto. O longa parece correr contra o tempo, talvez pela existência de muito material gravado, o que deixou a equipe apressada para finalizar o filme.
O diretor Ridley Scott confirmou recentemente que planeja lançar um corte maior do filme, o que comprova a teoria. Porém, por que o tom de seriedade de ‘House of Gucci‘ é tão levado à sério? A comédia do filme é geralmente atribuída à figura do Paolo de Jared Leto, mas será que não estamos fechando os olhos para o óbvio? Em ‘All the Money in the World (2017)‘, também de Ridley Scott, a comédia não está representada em nenhuma figura do elenco, apenas no fato deJohn Paul Getty III ser o homem mais rico do mundo e se negar inúmeras vezes em pagar um resgate de apenas 4 milhões de dólares para salvar a vida de seu neto.
Os personagens de ‘House of Gucci’ são todos odiáveis, e todos são conectados por uma única motivação – o poder em volta do legado da Gucci, que após a morte de Rodolfo Gucci, poderia se tornar um grande maquinário de dinheiro. A única pessoa da família que parece se preocupar com o legado da grife é Patrizia Reggiani, que se atormenta com réplicas da Gucci nos camelôs de Manhattan.
‘House of Gucci‘ é uma trágica e satírica saga, onde a aristocracia impenetrável dos Gucci conseguiu em apenas três décadas perder o comando do poderoso império da família para uma empresa de investimentos. Pra ser sincero, não existia um modo de conduzir esta história sem tirar sarro. Enquanto os Guccis achavam que vestiam as calças, na verdade, era Patrizia que as vestiam. Quando Maurizio Gucci percebeu, já era tarde demais. E de fato, em ‘House of Gucci‘, é Lady Gaga quem veste as calças do Lobo de Wall Street, jogando gasolina e ateando fogo em todas as línguas que se levantam contra ela. A presença de Gaga é tão forte que quando Patrizia é citada num diálogo, parece que sua aura engole a tela, engrandecendo toda a atmosfera do longa.
Por mais o público queira ver tudo o que a casa Gucci esteja escondendo, Ridley Scottnão precisaria mostrar detalhadamente o que aconteceu por baixo dos panos finos e sangrentos de ‘House of Gucci‘. Afinal, não se constrói um império sem causar carnificinas. Do mesmo jeito que Patrizia desestrutura a família para favorecer Maurizio, o longa acaba trabalhando de forma inconsistente na adaptação do livro de Sara Gay Forden. Apesar da edição ser um dos principais problemas do filme, tem jogadas interessantes para dosar o drama e a comédia. O lado negativo é que a edição de Claire Simpson acaba deturpando o ótimo roteiro de Roberto Bentivegna, tornando o texto vago e manco. No caso de Maurizio e Patrizia, a edição não permite que a história do casal seja profundamente explorada, nem chegamos a conhecer as camadas do conflituoso casamento. Simpson também tem problemas em dosar os tons do filme, o que enfraquece certas cenas de ‘House of Gucci‘. Alguns diálogos parecem vir de sketchs, outros claramente são quotes do livro baseado ao roteiro. Mas vale ressaltar que em suas qualidades, o longa trabalha com a diversão em diversas cenas, que funcionam muito bem graças à sintonia dos trabalhos sucintos de Jarede Gaga.
A fotografia de Dariusz Wolski para ‘House of Gucci‘ é boa, apesar de ser cinzenta como a de ‘All the Money in the World (2017)‘. Existem enquadramentos lindos, mas o longa precisava de cores mais vivas para contar a sua história. A edição mediana de Claire Simpson prejudica um roteiro promissor, que não merecia ser silenciado. A grandiosa produção de Ridley Scott tem figurinos belíssimos e cuidadosamente apurados para as três décadas problemáticas da família Gucci. Para um diretor de tanta idade, Scott ainda não perdeu seu brilho cinemático. Ele é ambicioso em tentar dar espaço de tela para todo seu elenco, mas todos nós sabemos, a história merecia ter sido contada na visão de Patrizia.
Claro que foi interessante conhecer mais da história de toda a família, não é entediante em momento algum. Inclusive, a emblemática cena da morte de Maurizio é assustadora. Sabe-se o que vai acontecer, mas depois de várias horas vendo ‘House of Gucci‘ tirar sarro da queda de uma das maiores aristocracias patriarcais da história da moda, percebemos que tudo não se passou apenas de uma bela tragédia grega.