Cinema Queer: filmes que você deveria assistir

Seria um erro separar o cinema queer de qualquer aspecto que forma o cinema como um todo. As obras com temática LGBTQIAP+ não só exercem um peso altamente significativo na construção da sétima arte, mas também estabelecem alicerces que conferem profundidade e frontalidade. É um movimento que tem um forte viés de disrupção, de estabelecer coisas novas e de romper, desconstruir ou subverter barreiras. É por isso que hoje reunimos 12 obras que giram em torno do cinema queer, como forma de comemorar o Mês do Orgulho. É uma lista de recomendações cuja intenção está longe de ser um ranking ou algo parecido. O cerne da publicação são obras que não apenas carregam a temática já citada, mas que também tendem a ir aos limites quando o assunto é cinema e manifestações LGBTQIA+.


Glen ou Glenda (1953)

O filme de Ed Wood sobre a transsexualidade e o cross-dressing parece operar em uma base completamente volátil. É datado, mas também transgressor. É hipócrita, mas honesto. É censurado, mas também autoral. Talvez seja um dos filmes mais contraditórios da história, mas é isso que o torna tão único. Parte inspirado no circo midiático em torno da cirurgia de redesignação sexual de Christine Jorgensen, parte autobiográfico, esse clássico do exploitation consegue, até nos momentos mais surrealistas, ser inteiramente humano, mesmo que isso signifique expor ao mundo uma parte de si que se gostaria de manter oculta. — Vitor Miranda


Sebastiane (1973)

Antes de Sebastiane gerar polêmica pelo retrato homoerótico da vida de São Sebastião, as pinturas do santo já haviam perpetuado os signos homossexuais pelos quais ele se tornou conhecido: sua expressão indolor, amarrado, vestindo uma tanga e perfurado por flechas. Ele é o padroeiro dos gays. O que Paul Humfress e Derek Jarman precisavam fazer, então, era apenas mirar no público e acrescentar generosas pitadas de sexo, nudez, um texto repleto de aleotria e uma forma distinta de registrar o prazer carnal condensado à religiosidade como aspectos marcantes de uma exposição conflitante — elementos que compunham a chamada de “estética queer”, que Derek não só estabeleceu como parte integrante do seu pioneirismo no cinema independente britânico, mas fez dela a matriz de tudo o que Sebastiane seria. É provocativo, é secular e dogmático, é profano e ungido. — Matheus José


Blue (1993)

O filme de Derek Jarman parece funcionar como uma antítese a uma ideia básica da norma cinematográfica: a imagem. Tudo o que é construído aqui vem do som, talvez porque, para Jarman, sua existência não esteja mais naquilo que é concreto. Lançado quatro meses antes de sua morte por complicações de saúde relacionadas à AIDS — doença que o tornou parcialmente cego, fazendo com que ele só conseguisse enxergar tons azuis — Blue é mais do que um experimento; é uma constatação de vida. É um lembrete da negligência e da omissão. É um poema impermanente cujas palavras não podemos enxergar. É algo próximo que não conseguimos alcançar. É o próprio significado do luto. Ele desconstrói a ideia de tempo, ao mesmo tempo que nos faz desejar que tivéssemos mais um pouco dele, ou que pelo menos as coisas pudessem ter sido diferentes. É tão deprimente quanto inspirador, tão inovador quanto monumental. — Vitor Miranda


Ligadas pelo Desejo (1996)

Muito mais controlado e preciso no formalismo que conhecemos dos seus trabalhos, o filme de estreia das irmãs Wachowski é mais do que um simples neo-noir: é uma história de amor que sugere uma saída para os ciclos de violência, é mostrar que fazer o que você sabe fazer não significa necessariamente estagnação, mas também um caminho para a liberdade. O olhar feminino não é um mero artifício; é uma conjunção entre a visão das diretoras, o papel dos personagens e a estrutura da história. Desde a ambientação até o enquadramento, tudo aqui parece ter seu próprio senso de espaço, e o que parece interessar às irmãs Wachowski é como suas personagens se encaixam nele. A mera presença de um casal lésbico no submundo do crime já é suficiente para nos manter atraídos pelo quadro, mas é toda a vida que existe fora dele que nos mantém desejando mais. — Vitor Miranda


O Fantasma (2000)

Questionado sobre as polêmicas de O Fantasma em entrevista à Folha de SP, João Pedro Rodrigues expõe: “Não fiz o filme para fazer escândalo. Minha preocupação era como filmar o desejo, como filmar um corpo. E o desejo que queria retratar era um desejo brutal”. É estranho pensar que mesmo sendo sua estreia na ficção, o diretor tinha plena consciência de que esse desejo era, e ainda é, seu maior aliado. O Fantasma corresponde quase literalmente ao desejo brutal acima mencionado; é a excitação noturna, o uniforme (ou a uniformização) dos mais variados fetiches e a mais pura certeza do quão humanos são os nossos prazeres. O mergulho na piscina, o sexo oral no banheiro público, os abusos e o aterro, onde vão parar nossos restos. Tudo isso é o que torna o desejo pelo descartável, excedente e muitas vezes incabível parte de uma cobiça, uma paranoia obsessiva, retratada vivamente aqui. — Matheus José


A Luta Pela Beleza (2003)

Verdadeiro divisor de águas na história do cinema LGBTQ+ asiático, Beautiful Boxer, apesar das limitações técnicas de ser uma produção marcada pela ação do tempo, continua sendo uma obra fundamental para entender como a Tailândia se tornou referência mundial na especialização em cirurgias de redesignação sexual. No filme, porém, qualquer ação vinculada às questões transexuais atuais passa por um denso arranjo de significados regionais e históricos no que diz respeito à personificação do debate sobre a presença de pessoas trans no esporte, na sociedade e no meio familiar. É uma peça que pode gerar debates, e seja seu saldo positivo ou não, é impossível negar sua importância. — Matheus José


Bottom (2012)

Nesse documentário estilo cinema-verité, acompanhamos um indivíduo anônimo cujo objetivo parece bastante simples: ter o máximo de relações sexuais sem proteção e manter uma contagem de quanto esperma ele consegue armazenar. É fácil dizer que o termo “extremo” não chega nem perto de exemplificar a dimensão que esse experimento de Todd Verow pretende alcançar. No entanto, há algo muito mais expressivo por trás de toda essa hostilidade visual que o diretor impõe ao espectador. Assim como em Crash, de David Cronenberg, Verow pretende mostrar quão longe a busca insaciável pelo prazer pode chegar. A subversão do diretor na retratação do amor e do sexo entre os marginalizados não deve ser interpretada como uma piada ou mera provocação, especialmente em uma sociedade conservadora que parece nutrir apenas repulsa a qualquer coisa do gênero. É mais do que apenas cinema na sua forma mais crua; é também um exercício ideológico revolucionário. — Vitor Miranda


Um Estranho no Lago (2013)

Compreender a complexidade humana significa também compreender a complexidade do cinema, não apenas como retrato, mas também como constatação. Stranger By The Lake parece operar na máxima dessas duas posições. Há a complexidade humana, da relação assolada pela modernidade e o sexo como epicentro de mudanças esquematizadas, propostas por diferentes grupos, mas que aqui se concentra na realidade de homens que buscam sexo sem compromisso à beira de um lago. A constatação, por sua vez, está no suspense que surge de um crime, parte intrínseca dessa mudança em voga pela exposição. O que se segue vai além do homoerotismo com cenas explícitas que deixariam o Twitter em polvorosa por dias se fosse lançado hoje — 2024, e não há quase, ou mais, de 10 anos —, mas se baseia no estômago embrulhado e na ansiedade que advém de pensamentos sobre segurança, pertencimento e imposição de uma realidade que nós, LGBTQIAP+, muitas vezes não podemos escolher. — Matheus José


SOPHIE LIVESTREAM HEAV3N SUSPENDED (2020)

Não é uma hipérbole considerar Sophie uma das artistas mais revolucionárias da história recente. Assim como Blue, de Jarman, SOPHIE LIVESTREAM HEAV3N SUSPENDED é um trabalho devastador de uma vida incompleta e interrompida, em que a vastidão de seu potencial e imaginação sugere uma possibilidade de preencher essa lacuna. Nesse trabalho, que se insere no chamado “cinema pós-internet”, SOPHIE revela a vida como a via: algo completamente mutável. Não há experiência fora do corpo, apenas uma vida independente dele. É mais do que um desafio para olharmos; é uma tentativa corajosa de nos fazer entender. — Vitor Miranda


Eismayer (2022)

Há, na figura dos militares, uma certa ação de domínio, força e brutalidade. Existem inúmeras representações desta filosofia quase homossexual. Caio Fernando Abreu, por exemplo, até hoje levanta questões sobre o que realmente queria expor com seu conto Sargento Garcia; desejo ou repressão? marginalidade ou apenas não-heterossexualidade na perspectiva de relações concebidas em ambientes onde a virilidade e a masculinidade operam como barreiras às manifestações afeminadas? Em Eismayer, aprofundamos a dicotomia entre homem, Homem, e homem gay. A diferença entre um e outro é substancial para atingir a proporção de relacionamento, dependência e paixão que atravessa qualquer posição austera de heterossexualidade. O filme não vai além do que certamente já vimos quando se trata de reprimir a sexualidade. Mas o ponto de colisão, quando já não há forma de manter a neutralidade, é a resposta de David Wagner a esta relação conflituosa e negligenciada dos homens em instalações de uso da força. — Matheus José


Fogo-Fátuo (2022)

Fogo-Fátuo é puramente consciente: tem considerações críticas relativamente ao seu regime, às alterações climáticas e à dificuldade da linguagem que hoje parece segregar o sexo (órgão) do prazer (sentimento) apenas pela representação abstrata de uma excitação barata e altamente calculada. Também pode ser uma fantasia — são inúmeras as possibilidades criadas por João Pedro Rodrigues e as suas insinuações queer como aspectos de uma salvação humana frontal, e por vezes ríspida. A emoção, a organização de ideias, ângulos e diálogos instigam, a todo momento, algumas marcas estéticas que não se comprometem para além da história de Portugal como nação. Pode ser metalinguístico, um tanto satírico ou apenas uma comédia descentralizada do nexo da concepção do homem em tempos de variações abruptas. — Matheus José 


Estranha Forma de Vida (2023)

Para os desavisados, pode ser fácil considerar Estranha Forma de Vida um trabalho menor de Pedro Almodóvar — seja pela sua dimensão ou por sua substância. No entanto, a verdade é que seu olhar lascivo sobre essa reinvenção de Johnny Guitar é tudo de melhor que se pode esperar do diretor. A distância que separa os personagens parece apenas reforçar o sentimento que eles têm um pelo outro, mas um reencontro que deveria funcionar como uma forma de união apenas mexe em feridas que não foram completamente curadas. A mise en scène teatral é mais uma alusão ao trabalho de Nicholas Ray, mas, diferente desse clássico, a síntese do curta de Almodóvar parece girar em torno de tudo aquilo que é anticlimático. Os personagens engessados exercem sua função; eles estão parados no tempo, presos nos dias de glória do passado que não voltam mais, e a única coisa que possuem que remete à sensação de viver aquela vida é a ternura e o amor que sentem um pelo outro. — Vitor Miranda