Querelle (1982)

Avaliação: 4 de 5.

“Querelle”, último filme de Rainer Werner Fassbinder antes de sua morte em 1982, parece ser o canto do cisne perfeito para um diretor que sempre mostrou seu estilo subversivo como ele realmente era. Na adaptação de ‘Querelle de Brest’, obra escrita por Jean Genet, somos conduzidos à jornada do personagem homônimo, um marinheiro cuja chegada a Brest desencadeia um ímpeto sexual e violento que serve para mostrar não somente a transgressão individual de um personagem, mas também para exibir quão primitivo o comportamento humano pode ser. Ao atracar seu barco na cidade de Brest, ele se vê cada vez mais imerso em sua própria sexualidade, seja nos seus envolvimentos com o dono do bordel, com um policial que parece monitorar cada um de seus passos, ou com um operário envolvido em uma investigação criminal. 

A abordagem adotada por Fassbinder neste caso é notavelmente brechtiana, onde a distância estabelecida entre o filme e o espectador não se configura apenas como um artifício, mas sim como uma estratégia deliberada para proporcionar uma perspectiva mais abrangente sobre o comportamento de Querelle e de todos a sua volta. Se a mise-en-scène evoca elementos teatrais, o diretor lida com essa influência de maneira profundamente performativa. A narração, neste contexto, não representa apenas uma escolha do diretor, mas emerge como o pilar que sustenta e reforça as dinâmicas em Brest. O desejo e o impulso sexual transbordam das cenas, porém, não desviam a atenção do espectador do objetivo principal da obra: uma análise das complexidades psicossociais que permeiam as interações entre os personagens. A sexualidade de Querelle não se limita a ser apenas uma característica de sua persona; ela atua como uma ferramenta empregada para subverter ainda mais as perspectivas em torno da homossexualidade. Querelle trafica, mata e trai, mas o que tem de tão notável nisso? Talvez não seja tanto a natureza dos atos em si, mas sim a maneira como Fassbinder escolhe retratá-los. 

A transgressão aqui não é apenas sexual, mas também moral, e o diretor parece fazer de tudo para suprir a expectativa que temos em relação ao personagem. Mas se ele faz isso, onde está a subversão? Para falar a verdade, a própria resignação da natureza do papel do homossexual no cinema parece funcionar como a grande subversão na obra de Fassbinder. Ele inverte as convenções estabelecidas e mantém o controle de uma narrativa que, nas mãos de alguém alheio à comunidade queer, poderia facilmente ser manipulada para prejudicar o personagem. Não surpreende que o filme tenha sido mal compreendido no momento de seu lançamento, considerando que a abordagem de Fassbinder parece operar muito mais como uma contra-história gay do que como uma abordagem mais convencional.

Vicente Canby, do New York Times, escreveu: “Praticamente os únicos laços entre Fassbinder e Genet são a vontade de chocar e uma agressiva falta de autoconsciência sobre a sua homossexualidade.” Além de sua suposição errônea sobre a homossexualidade, Canby parece não entender completamente a essência do que Fassbinder pretendia destacar. Há um mal-entendido comum na representação de personagens amorais, mas um equívoco ainda maior se manifesta na forma como certos segmentos da crítica conservadora decidem olhar para esses personagens. A representação de desvios morais e éticos, por si só, não equivale a um endosso desses atos. No caso de “Querelle”, tais representações servem primordialmente para explorar as complexidades psicológicas do personagem em questão.

O que também parece contribuir para a evolução de Querelle ao longo do filme é o narcisismo inerente à imagem masculina no trabalho de Fassbinder. Aqui, essa característica do personagem o coloca em conflito com todos que o atraem, possivelmente sendo essa a razão pela qual ele enxerga em seu rival (seu irmão) tudo aquilo que deseja em si mesmo. Ele recorre à trapaça e à traição contra aqueles que o encantam, talvez como uma forma de resistir ao que está por debaixo de sua pele. Em uma cena onde Querelle entra em um duelo de facas com seu irmão, parece que ambos estão diante de um espelho, ecoando movimentos um do outro, enquanto reprimem desejos mútuos. A escolha dos atores parece deliberada, porque é na semelhança que eles dividem fisicamente que a questão narcisista provocada por Fassbinder parece se tornar ainda mais pronunciada na narrativa. São em momentos como esses que “Querelle” parece sobressair a uma mera adaptação.

Disponível no MUBI.