A Hora da Estrela (1985)

Avaliação: 4 de 5.

Muitas vezes clássicos chegam até nós de formas inusitadas, é o meu caso com A Hora da Estrela (1985) que veio até mim em uma manhã chuvosa em que apenas quatro alunos haviam ido para a minha aula e precisei encontrar um filme curto, mas que também tivesse a ver com a matéria de língua portuguesa, minha especialidade. Logo lembrei da adaptação do romance de Clarice Lispector, recentemente remasterizado e está sendo exibido em alguns cinemas pelo Brasil. Muitas dúvidas pairavam sobre como seria a recepção dos alunos a respeito do filme, por ser antigo e conhecerem Clarice apenas através de um conto oferecido por mim em outro momento, porém logo me dei conta de que a escolha tinha sido certeira.

Para quem não está familiarizado com a história, ou até mesmo com a autora, saiba que não podemos esperar grandes reviravoltas por meio das ações dos personagens quando se trata de Lispector, isso se dá de forma muito mais singela e através de passagens que nos deixam pensando por dias. Nesta narrativa, temos como justificativa a própria existência de Macabea — interpretada de forma muito fiel por Marcélia Cartaxo — uma nordestina datilógrafa que se muda para a cidade de São Paulo. Lá ela encontra o que se vê até hoje pela cidade: solidão, frieza e metrôs. A jornada da personagem em uma megalópole fala a respeito de muitas pessoas que se mudam para lá em busca de uma vida nova e realização de sonhos, entretanto, enquanto Macabea se descobre, ela também descobre quais são seus sonhos.

Trabalhando como datilógrafa em uma pequena empresa, Macabea convive com poucas pessoas, se aproximando da personagem de Tamara Taxman, a Glória. É com essa amizade que a inocente sertaneja começa a desconstruir sua virgem inocência e parte em uma jornada de amores desconcertados e tesão pelos rapazes do metrô. Morando em uma pensão para mulheres, pode-se dizer que o rádio é seu melhor amigo, sempre ao pé da sua cama tocando um programa de curiosidades científicas que faz com que Macabea se apaixone ainda mais pelo universo e por palavras difíceis, das quais sempre se pega pensando sobre o significado de cada uma delas, farejando novamente por algo novo, ou o despertar de novas ambições.

Certo dia, corrompida pela sua colega, decide pedir folga no trabalho e sai para encontrar alguém que quisesse namorar e encontra Olímpico (José Dumont), um rapaz também nordestino que trabalha como operário. Os dois passam a se encontrar constantemente, embora não combinem em nada e muito menos tenham assunto ou admiração um pelo outro. Macabea sempre é hostilizada pelo companheiro, enquanto tenta descobrir ao lado dele como funciona seu mundinho. Glória por sua vez, tenta a todo custo se casar pois é mulher formada e sabe muito bem do que deseja para o seu futuro. Certo dia em uma cartomante (Fernanda Montenegro), Glória descobre que para conquistar um marido, precisa roubar o namorado de uma colega, e opta certamente em interferir no relacionamento desconcertado e quase que de mentira de Macabea e Olímpico.

A partir desse é que a direção de Suzana Amaral brilha de forma quase tão poética quanto o romance de Clarice. Muitas vezes, vemos a personagem principal admirada com seu reflexo, dançando pelos cantos e decorando seu cantinho com imagens aleatórias recortadas de uma revista, isso tudo demonstra como a mente da jovem é inocente deslumbrada com a própria existência, sem precisar de um script ou diálogos. O trabalho de tradução dos sentimentos que temos ao ler o romance é muito fiel, e como toda adaptação se trata de uma tradução intermidiática/semiótica, trabalhos como esse que carregam com si não só uma história, mas toda a catarse envolvida no processo de releitura, merecem ser relembrados.

Os diálogos são também parte revigorante do filme, pois em meio a uma perspectiva mais existencialista e contemplativa de contar a história através das lentes, existe um contraste com as pérolas que os personagens soltam no meio do fazer diário, papel muito bem atribuído à Glória. Macabéa em certos momentos traz um tipo de humor mais sutil e situacional, que podem soar até mesmo banais ou pouco lapidados para o tratamento final, porém falas como: “eu gosto de parafusos, e você?” se tornam grandes momentos de comédia na tentativa de demonstrar como a menina (de forma fracassada) procura puxar assunto com seu companheiro. Entretanto, a complexidade narrativa de Clarice também se faz presente, com passagens mantidas da sua forma original que trazem aquela lembrança de estar se deparando com uma obra lispecteriana, lembro de ter me sentido devastado com um diálogo entre Macabea e Olímpico, que revela seu desejo de conhecê-la melhor ao afirmar que “gente fala de gente” e obtém um “mas eu não acho que sou muita gente” como resposta. Se isso não for Clarice Lispector em sua essência, não sei mais o que seria.

A dinâmica da coisa toda é muito certeira, o filme é capaz de cativar e sensibilizar sem precisar apelar para grandes tragédias ou injustiças incapazes de serem esquecidas, sua estratégia é nos aproximar de Macabea a partir dos dilemas que também lidamos e com exemplos muitos verossimilhantes como: a descoberta das coisas ao redor pelo programa de rádio; da forma como nos sentimos mais bonitos pelo fato de comprar um batom na farmácia; o tanto que queremos ser desejados e receber uma ligação do nosso namorado em nosso trabalho sem motivo aparente. Tudo isso é feito sem nem sempre precisar ser dito, um grande acerto da montagem e decupagem do roteiro. Todas essas coisas tornam a experiência cativante, melancólica e muito bem equilibrada com pitadas de acidez e pequenos escândalos, quando tudo muda a partir da chegada da cartomante.

Não é de hoje que a presença de Fernanda Montenegro é tão querida nos filmes, podemos observar nessa participação que há anos a atriz ocupava um espaço carinhoso no imaginário popular. Com esta personagem, Fernanda joga todo o seu carisma na mesa junto das cartas, trazendo um pouco de vilania e charlatanismo para as cenas. Entretanto, no último ato, a personagem se torna definitiva para o encerramento da história e acaba se tornando uma saída fácil tanto para o roteiro quanto para a montagem, que a partir daí deixa a desejar. Tudo aquilo que tornava o filme uma sensação de estar em contato direto com o romance de Clarice escapa pelas mãos do espectador, pois a montagem corre em busca de algo que não funciona, tentando transformar o clímax da narrativa em algo mais dinâmico que o necessário, o que transforma o desfecho inesperado em algo banal e sem emoção.

Uma pena, pois a quebra de expectativa do final do romance é um dos maiores encerramentos vistos na literatura brasileira, sendo algo extremamente reduzido e sem impacto no longa. O filme poderia demorar mais meia hora para construir essa nova etapa da narrativa, através das observações da cartomante e toda a vigarice por trás da aproximação dela e de Macabea pelo intermédio de Glória. O filme termina com uma sensação de inacabamento, como se estivessem tirando a mesa do jantar antes da sobremesa. Apesar disso, vale a pena revisitar essa incrível empreitada de Clarice através da ótica criada por Suzana, uma vez que nos deparamos com sua essência captada através das imagens, trilha musical e ângulos que chegam perto da poesia da autora, conversando com qualquer tipo de público, inclusive com meus alunos no início da adolescência que adoraram o azar de ter ido para a aula naquele dia de tempestade.

Disponível em cinemas selecionados.