Entrevista com Noëlle Pujol

Confira a versão em inglês dessa matéria.

Nascida em 1972 nos Pirenéus, entre a França e a Espanha, Noëlle Pujol se destaca como uma artista e diretora no cenário do cinema avant-garde. Sua abordagem experimental em relação à linguagem e à encenação não é apenas uma marca registrada, mas também a espinha dorsal de seu cinema. Graduada em história da arte pela Universidade de Toulouse le Mirail, Pujol prosseguiu seus estudos na Escola de Belas Artes de Paris, onde iniciou suas primeiras obras.

Em 2002, Pujol lançou “Twins” e “VAD (Visite à Domicile). Em “Twins”, com a voz de Krystian Woznicki, Pujol explora os eventos do 11 de setembro sob a perspectiva de duas irmãs gêmeas brincando solitárias numa rua deserta. O curta foi filmado no primeiro aniversário do ataque, quando a cidade inteira estava em luto pelas vítimas. Quando Woznicki comenta que tudo parecia “um filme”, uma das gêmeas responde de imediato: “Mas não é”. Já em “VAD (Visite à Domicile)”, Pujol começa a explorar um tema que se tornaria recorrente em sua carreira: sua experiência como criança de abrigo. No filme, a diretora retrata sua primeira visita à casa de Edmonde, sua mãe biológica. “VAD” foi seu primeiro trabalho a ser exibido em festivais internacionais, incluindo o Festival de Locarno e o Festival Internacional de Cinema de Marseille, consolidando sua presença no cenário cinematográfico global.

Em 2010, Pujol lançou “Histoire racontée par Jean Dougnac” (ou “Story told by Jean Dougnac”), filme que lhe rendeu o prêmio do Grupo de Pesquisa em Cinema Nacional no Festival Internacional de Cinema de Marseille. Através de um extenso monólogo, Dougnac, visivelmente limitado por sua condição, revisita o passado de René e Edmonde, os pais biológicos de Pujol. Ele compartilha momentos marcantes da gravidez de Edmonde, nos quais, segundo sua narrativa, assistentes sociais tentaram interferir na gestação que traria a futura diretora ao mundo. A câmera, imóvel ao longo dos quarenta minutos do filme, estabelece uma proximidade íntima com Pujol, como se ela confiasse plenamente na capacidade da audiência em absorver cada aspecto dessa história.

“Le Dossier 332,” lançado em 2012, é uma exploração profunda das complexidades que cercam a vida de Pujol e de seus dois irmãos biológicos, Aline e Didier. O filme inicia com uma imagem de uma montanha, mas logo adota um tom burocrático e mecanizado ao nos guiar pelos arquivos das crianças de René e Edmonde. Separada de sua mãe pouco após o nascimento, Pujol enfrentou desafios relacionados aos serviços sociais desde seus primeiros momentos, sendo retirada da maternidade devido à falta de pessoal disponível.

Neste trabalho, a linguagem única da diretora começa a se manifestar de forma nítida. Sua habilidade em entrelaçar texto e imagem é notável: paisagens naturais impecáveis são contrastadas com passagens técnicas que exploram todos os aspectos do processo de assistência social que envolvem as crianças. O filme atinge um equilíbrio delicado entre a essência inconsciente da natureza e a formalidade das interações humanas.

Apesar de estar repleto de momentos sublimes, duas sequências se destacam ao longo do filme. A primeira envolve um acidente de carro, cuja autenticidade permanece ambígua. A colisão dos veículos parece visualmente representar o choque entre as diferentes linguagens que Pujol explora ao longo do filme, quase como uma catarse visual. A outra sequência é mais simples: dezenas de cabras são conduzidas por uma rua vazia. O que chama a atenção aqui não é algo necessariamente carregado de significado, mas sim a habilidade da diretora em guiar a cena, evocando uma estética semelhante ao trabalho da cineasta Sharon Lockhart em “Exit”, onde ela observa o fluxo de pessoas ao final do expediente de trabalho.

O seu trabalho mais experimental, e por assim dizer, impessoal, é “Jumbo/Toto, histoires d’un éléphant”. Em 1908, um pequeno elefante deita ao lado do corpo sem vida de sua mãe enquanto o caçador Hans Schomburgk observa o animal. O elefante resiste à captura, e Schomburgk, fascinado por sua agilidade, decide adotar o animal. A jornada de Jumbo é traçada por meio de intertítulos, criando uma dissonância entre a narrativa e as imagens capturadas por Pujol. Enquanto em “Au hasard Balthazar” de Robert Bresson, o burro é uma figura oprimida, sofrendo nas mãos de quase todos que cruzam seu caminho, “Jumbo/Toto” apresenta o animal no centro como uma figura muito mais resiliente.

Ao chegar em Roma, Jumbo é apelidado de Toto e começa a estrelar filmes na cidade. A carreira do elefante culmina com uma performance na ópera “Aída”. Grande parte do filme se concentra na imaginação do espectador, convidado pela diretora a construir as imagens de acordo com sua preferência, sem orientações precisas. O filme abarca um extenso período histórico, marcado por eventos específicos como as filmagens de “Harakiri” de Fritz Lang (1919) e o início da Segunda Guerra Mundial em 1939 (ano da morte do animal). Através de momentos como esses, o filme explora temas como história, guerra, cinema, teatro e política, mantendo a perspectiva única da diretora e transformando esses elementos em um retrato complexo da solitude.

O mais recente trabalho da diretora, “Didier’s Letters”, foi exibido no Festival Ecrã na cidade do Rio de Janeiro. Nesta obra, Pujol aprofunda sua relação com seu irmão Didier, que se comunica com ela por meio de cartas. Inspirada nos filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, a diretora utiliza uma encenação livre para oferecer uma nova perspectiva sobre o relacionamento deles. A linguagem que Pujol emprega, tanto na reinvenção da escrita de Didier quanto nas interpretações de Nathalie Richard e Axel Bogousslavsky, às vezes torna-se quase intangível.

O filme navega habilmente entre o espaço físico do ambiente de filmagem e a forma como as cartas são encenadas, muitas vezes optando por interpretações espontâneas e extravagantes. As interações não se limitam apenas entre os personagens, mas também se estendem ao ambiente ao redor deles. Isso assegura que o espectador esteja constantemente ciente de que não está apenas assistindo a uma representação formal e realista da história, mas sim sendo convidado a entrar em um mundo de emoções e conexões humanas profundas, onde a linha entre realidade e interpretação se torna tênue.

A VHS Cut teve o privilégio de realizar uma entrevista exclusiva com a diretora, que aproveitou a oportunidade para oferecer uma visão íntima do seu processo criativo. Confira:


Vitor: A linguagem que você utilizou em seus filmes recentes foi bastante distinta. Em “Jumbo/Toto”, pude perceber traços de Godard, enquanto “Didier’s Letters” se assemelha fortemente aos filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Existe alguma influência em seu trabalho, ou são apenas coincidências?

Noëlle: Ambos os filmes se baseiam em documentos escritos. Eu escolhi 10 cartas dentre as 149 disponíveis que meu irmão me enviou ao longo de muitos anos. A escrita poética de Didier me fascina: ele escreve longas frases sem pontuação. As palavras são deformadas, recompostas, repetidas. Sua escrita, como um traje de Arlequim, feita de fragmentos e colagens, confere à sua linguagem uma materialidade, uma sonoridade particular, um ritmo. Para “Jumbo/Toto, histoires d’un éléphant”, passei mais de 8 anos buscando e coletando documentos (livros, artigos de jornais…) dos arquivos alemães e italianos do início do século XX, nos quais o elefante aparecia. Foi durante a edição, com Claire Atherton, que recortamos e reunimos todo esse material escrito para criar uma narrativa, com intertítulos em tela cheia. “Jumbo/Toto” é um filme de aventura que mistura mito, tragédia e suas extensões íntimas e políticas. Os cinemas de J-M Straub-Danièle Huillet e Jean Luc Godard são para mim formas livres que ainda hoje me permitem acompanhar minha busca artística com entusiasmo, leveza, força e inocência.

Vitor: Em um momento, os atores leem uma carta onde Didier diz: “Noelle, você é a única que sabe me entender”. Você considera isso ser a razão pela qual decidiu fazer este filme?

Noëlle: É a força vital do cinema que carrega consigo a linguagem de Didier que me impulsionou a fazer este filme. Sua linguagem é cinematográfica. Habitar na linguagem de Didier é habitar em seu imaginário. Ele é o cronista dos sonhos e da realidade. Ele faz tudo explodir, a gramática, o mundo, tudo, tudo está em movimento!

Vitor: Como você teve a ideia de distorcer e reinventar as cartas de seu irmão?

Noëlle: Eu não distorci as cartas de Didier. Senti que precisávamos ir muito longe com os dois atores e suas cartas, em um país estrangeiro. Escolhi a Hungria. Por doze dias, ficamos em Torvaj – uma pequena vila próxima ao Lago Balaton – para realizar experimentações. Era o nosso estúdio ao ar livre! Torvaj era um pouco o nosso Brigadoon! Eu queria que os atores se confrontassem com os espaços, ocupassem o espaço, em uma jornada, no exílio, no país das cartas de Didier.

Vitor: Nathalie Richard e Axel Bogousslavsky parecem genuinamente livres para encenar aquelas cartas da maneira que preferirem. Você deu a eles alguma instrução ou simplesmente os deixou fazer como quisessem?

Noëlle: Antes de filmarem as cenas, Axel e Nathalie se apropriam dos textos brutos, experimentam a leitura em voz alta, o falar-cantar. Eles exploram diferentes tonalidades para dar vida ao humor, à ironia e à emoção contidos nos escritos de Didier. Eles falaram sobre as vozes de Malraux, de Camus. A eloquência de Malraux, pronunciando vogais e consoantes, dando ritmo à frase. A dicção de Nicole Stéphane em “Les Enfants Terribles”, de Jean-Pierre Melville. O discurso de Martin Luther King, um cântico de paz extremamente poderoso. Uma atenção a todo o surgimento da linguagem e da poesia. Buscar a grandiosidade com a poesia. Axel diz: “Não é apenas uma palavra, é uma ação”. Isso os faz lembrar dos sonetos de Shakespeare que narram coisas cotidianas. Eles movem móveis nos campos. Eu apresento um trecho de uma cena frenética cantada e dançada por Ivie Anderson em “Um Dia nas Corridas” (Sam Wood, 1937), depois saímos para gravar nos caminhos do campo. Filme e vida se entrelaçam.

Vitor: Você considera o seu trabalho próximo do realismo? Porque tanto em “Jumbo/Toto” quanto em “As Cartas de Didier”, percebi que sua abordagem parece pretender fazer o espectador estar plenamente consciente de que está assistindo a uma obra de arte, em vez de uma representação fiel desses eventos.

Noëlle: Eu me interesso pelo contato criativo com o que me cerca: as pessoas, as ruas, as paisagens, os objetos. Eu me projeto com eles e neles. Como articulá-los, cuidar dos detalhes, a articulação dos detalhes. Avançamos, buscamos juntos, fazemos perguntas que não são necessariamente respondidas. A vida, o imprevisível, são um pouco de tudo isso que gosto de compartilhar com os espectadores que descobrem meus filmes.

Vitor: Claire Atherton, que é a editora de muitos dos seus filmes, foi responsável pela edição de várias obras de Chantal Akerman. Como você se conectou com Atherton? Você acredita que ela trouxe parte de seu trabalho com Akerman para seus filmes?

Noëlle: Claire Atherton edita filmes de ficção, documentários e também instalações em vídeo. É por essa razão que eu quis trabalhar com ela. Estamos colaborando juntos desde 2007. Claire frequentemente compara o gesto da edição ao de esculpir. Longe de usar imagens e sons para servir a uma mensagem, ela os ouve e molda para dar origem ao filme. Claire coloca a investigação e o movimento no centro de seu trabalho. Ela não está tanto interessada em fornecer respostas, mas sim em questionar para que o cinema permaneça vivo.

Vitor: “Boum! Boum!”, seu novo filme, parece ser muito mais impulsionado pela narrativa do que suas outras obras. Você poderia falar um pouco mais sobre a ideia por trás do projeto?

Noëlle: Estou desenvolvendo “Boum! Boum!”, com Clémentine Mourão-Ferreira (produtora franco-portuguesa, So-Cle Production), a continuação fictícia das “Lettres de Didier”. Parto das correspondências do meu irmão, combinando a energia e a essência de sua linguagem com o bairro das Pulgas de Saint-Ouen. “Boum! Boum!” é um filme contemporâneo, um filme de rua sobre o amor e a liberdade. Através de seus personagens excêntricos, emerge um retrato fragmentado da Terra. Como o próprio título sugere, é um batimento cardíaco, um rufar de tambores, uma explosão.


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