Toronto 2023 – Banel e Adama, Snow Leopard & The Mother of All Lies

Em “Banel & Adama,” o primeiro longa-metragem dirigido por Ramata-Toulaye Sy, uma relação amorosa e a busca por independência são contrapostas por uma narrativa trágica que faz lembrar o clássico de Macbeth, onde o destino de seus personagens se torna irreversível. No filme, um jovem casal vive à margem da sociedade ao seu redor. Os dois residem em uma vila ao norte do Senegal, mas parecem indiferentes às questões que envolvem o grupo de pessoas local. Em um momento do filme, Adama chega a renunciar ao cargo de chefe da tribo, abrindo mão de sua responsabilidade e do poder que acompanha tal decisão. Na visão da diretora, esse sacrifício foi motivado pelo amor. Tanto ele quanto Banel sonham em viver longe da vila, e ambos trabalham para desenterrar uma casa que foi coberta pela areia. No entanto, devido a uma maldição que atormenta os moradores da região, os sonhos do casal parecem se tornar distantes. Uma seca se abate sobre a área, o gado começa a morrer, os cidadãos adoecem e o cemitério da vila precisa ser ampliado. 

É diante dessa situação que a diretora decide retratar essa suposta história de amor. A linguagem visual do filme faz referência ao trabalho de Terrence Malick, embora Sy não busque criar uma visão tão grandiosa quanto a do diretor. Ela explora o confronto entre o cotidiano e o surreal, capturando a essência de ambas as abordagens de maneira experiente — em momento algum esse parece o trabalho de uma iniciante. Existe uma urgência visual em capturar o sentimento de isolamento e alienação que os personagens enfrentam, o que faz com que o trabalho de Sy chame mais atenção pelos elementos visuais do que pela sua substância. No entanto, isso não diminui a qualidade da história do filme. É verdade que algumas ações que ocorrem ao longo da trama podem parecer sem sentido, mas a diretora lida com o arco trágico de seus personagens de maneira fascinante. Grande parte do filme funciona graças a Khady Mane que, embora não seja uma atriz profissional, consegue conduzir o filme com os impulsos da sua interpretação.

Se em “Banel & Adama” acompanhamos a ascensão de uma estrela, em “Snow Leopard” experimentamos um belo canto do cisne. O último filme do diretor tibetano Pema Tseden é um retrato do legado que ele deixou para o cinema ocidental. A história é bastante simples: um leopardo-das-neves invade um terreno e mata nove carneiros, levando o dono dos animais a buscar alguma forma de justiça. O grande dilema do filme é se devem matar o animal ou deixá-lo ir. No papel, tudo isso pode parecer desinteressante e básico, mas a maneira como Tseden transforma essa história em um retrato da natureza primitiva dos seres vivos é o que faz o filme funcionar tão bem. Um monge afirma ter uma relação espiritual com o animal e, por isso, faz de tudo para que ele seja libertado. Já o dono dos carneiros parece irredutível, mas o que inicialmente parece ser uma revolta causada pelo luto logo se transforma em uma disputa por compensação financeira.

Tseden conhece a natureza humana o suficiente para perceber que, na maioria das vezes, tudo se resume a uma coisa: dinheiro. Este é o maior obstáculo na vida de todos os envolvidos, desde a equipe de filmagem, que faz de tudo para capturar os detalhes dessa história, até aqueles que de alguma forma se sentem ligados ao animal. São quase duas horas de duração, durante as quais homens adultos fazem de tudo para encontrar alguma forma de compreender o que aconteceu, e é isso que parece interessar tanto ao diretor. Ao introduzir o elemento da filmagem na história, Tseden deixa implícito que uma das razões pelas quais capturamos e observamos imagens é porque essa é uma das únicas maneiras que temos de entendê-las. É o filme perfeito para encerrar a carreira de um diretor que parecia ter tudo pela frente.

“The Mother of All Lies,” documentário dirigido por Asmae El Moudir, pode ser menos extraordinário do que os filmes mencionados anteriormente, mas não é necessariamente inferior. O trabalho da diretora talvez seja um dos mais notáveis do ano, não por questões técnicas ou exuberantes, mas pelo simples fato de parecer suficiente para questionar a própria existência. O filme parece um acerto de contas em grande escala, seja entre familiares ou entre um indivíduo e sua própria história. Moudir confronta tudo aquilo que, até então, ela considerava verdade. A teia de mentiras que conduziu sua vida até aquele momento parece desenrolar diante das câmeras, e por um momento tudo parece fazer sentido. De questões que vão desde a tirania de sua avó até a “Revolta do Pão” que ocorreu nas ruas de Casablanca, a diretora consegue transformar uma questão pessoal em um filme extremamente político. 

Utilizando maquetes para reconstruir os eventos, a narrativa de Moudir se torna concretamente visível. Ela aborda os horrores provocados pelas questões políticas que moldaram a história de sua família e de seus conhecidos, ilustrando como esses eventos foram capazes de transformar profundamente tudo o que eles conheciam. Sua avó, Zahra Jeddaoui, surge no filme como uma personificação do poder que silencia os marginalizados ao longo de décadas. Ao longo de sua narrativa, Moudir explica que Jeddaoui é a principal responsável pela fragmentação de sua família, embora nada disso seja sugerido de maneira sutil durante filme. Jeddaoui age explicitamente como uma força opressora que amedronta todos que cruzam seu caminho. Ela não mede esforços para se mostrar menos tirânica, como se as câmeras não fossem suficientes para fazê-la refletir sobre suas ações. São em momentos como esse que o filme soa imponente. A diretora evidencia como as ditaduras são instauradas, sejam elas nas ruas ou dentro de seu próprio lar.


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