Embora o COVID não tenha afetado diretamente a produção de documentários – já que os mesmos envolvem uma equipe bem mais reduzida do que filmes de ficção – é notável que produções mais independentes ganharam um espaço maior na indústria. É sempre muito difícil comparar os filmes dessa categoria, porque ao mesmo tempo em que diversos deles abordam temas de justiça social com uma grandiosidade épica, também existem vários trabalhos mais pessoais que ressoam o mesmo tipo de importância narrativa. Sem levar em consideração os temas abordados – porque não há tema inferior ou superior – aqui estão alguns trabalhos que mais chamaram minha atenção ao longo do ano:

10. Miúcha: A Voz do Bossa Nova (Daniel Zarvos e Liliane Mutti)
O filme de Daniel Zarvos e Liliane Mutti nos mostrou uma Miúcha desconhecida por grande parte do público. Ao invés de focar na sua extensa carreira como cantora, Zarvos e Mutti decidem mostrar uma versão mais pessoal e vulnerável da cantora. O filme mostra bem como o papel da mulher na sociedade as vezes se resume aos cargos de esposa e mãe, sem dar espaço para que as mesmas possam seguir os seus sonhos. É um trabalho pessoal (Zarvos era primo da cantora) que mostra que a grandiosidade de Miúcha não se resumia apenas a sua carreira como cantora.

09. Casa Susanna (Sébastien Lifshitz)
O filme de Lifshitz explora a história de um clube de cross-dressing nas Montanhas de Catskill durante as décadas de 50 e 60. A abordagem ao retratar a vida daquelas pessoas era a de analisar e entender a importância que aquele movimento tinha na vida de cada um dos envolvidos. A Casa Susanna era o único lugar do mundo onde aquelas pessoas podiam ser verdadeiramente elas mesmas, sem o medo do julgamento da sociedade. Ao permitir que os entes queridos daquelas pessoas contassem as suas versões da história, nós vemos o quanto a rejeição e repressão afetou a vida deles. É um empático e poderoso retrato da aceitação.

08. A House Made of Splinters (Simon Lereng Wilmont)
Talvez o filme de Wilmont seja o documentário mais desolador do ano. O filme acompanha um lar temporário para crianças abandonadas, e as imagens que presenciamos são o suficiente para nos mostrar a quantidade de traumas que aquelas pessoas tem que enfrentar diariamente. É um trabalho que não mostra apenas o sofrimento daquelas crianças, mas também dos funcionários, que muitas vezes, se enxergam encurralados e impotentes diante daquela circunstância.

07. Riotsville, USA (Sierra Pettengill)
Retratando os protestos que ocorreram ao longo dos anos 60 nos Estados Unidos, o documentário de Pettengill mostra através de imagens de arquivos toda a dimensão que aquelas ações civis tinham na política americana daquela década. Marcados pela guerra do Vietnã e por protestos causados por questões raciais, a década de 60 também trouxe à tona a violência policial que existia com o intuito de silenciar as minorias que lutavam pelos seus direitos. Além do trabalho de Pettengill ser um estridente ato de ativismo, o longa também é um atual lembrete de como o governo federal dos Estados Unidos é conivente com toda a violência causada pelos órgãos que deveriam trabalhar a favor da população.

06. The Plains (David Easteal)
O documentário de Easteal, que foi o meu filme favorito entre os filmes selecionados para o Festival de Rotterdam 2022, encontra uma construção épica (são 180 minutos de duração) na simplicidade das ações do dia-a-dia. O mundo no filme de Easteal é construído e moldado através das conversas de Easteal com Andrew Rakowski (o motorista do carro). Tudo que nós sabemos e vemos é o que eles narram ao longo do filme, enquanto observamos os diálogos na posição espectador. É uma experiência transformadora para qualquer um que se permita levar pela ‘conversa fiada’ que o filme promove.

Como eu disse na minha crítica do filme, o trabalho de Pritz supera qualquer barreira narrativa e se torna uma verdadeira ferramenta de resistência conforme ele se aprofunda na luta do povo Uru-eu-wau-wau contra os garimpeiros. É uma história trágica sobre a luta que essas pessoas tem que enfrentar para manter as suas terras, mas toda a injustiça e ações criminais são ampliadas por conta do aspecto político que o Brasil suportou nos últimos quatro anos. A mensagem final é que essas pessoas só anseiam por um futuro melhor onde não seja necessário lutar diariamente pela própria sobrevivência.

04. Os Anos do Super 8 (Annie Ernaux & David Ernaux-Briot)
Em ‘Os Anos do Super 8’, Ernaux explora as memórias do passado com uma veia política, mas sem deixar que isso seja maior do que a conexão pessoal que ela tem com a própria história. É uma ode à todo o seu passado, contado em um ritmo lírico que acentua todos os sentimentos que ela tem em relação com suas lembranças.

03. O Último Navio Negreiro (Margaret Brown)
Brown não só foi capaz de construir um trabalho completamente comprometido com questões de identidade, ela também foi capaz honrar a história daqueles que já se foram, eternizando vidas que por muitos anos permaneceram esquecidas. Não é só a grandeza das histórias contadas que tornam ‘O Último Navio Negreiro’ uma experiência essencial. O que realmente torna o trabalho de Brown em algo transcendental é empatia com que a diretora tem ao dar espaço para pessoas que se recusam a ser ignoradas.

02. How to Save a Dead Friend (Marusya Syroechkovskaya)
A história de amor mais trágica do ano é também um retrato dilacerante de como as vezes o amor não é suficiente. Os primeiros momentos do longa de Syroechkovskaya são tomados por um ar de desolação, mas conforme a história prossegue é possível sentir um fio de esperança surgindo de uma história que parecia fadada ao desastre. Ao mesmo tempo em que é uma história pessoal sobre o vício e a depressão, a linguagem da diretora se torna universal a partir do momento em que se é mostrado que, no fundo, todos somos um pouco quebrados.

01. All the Beauty and the Bloodshed (Laura Poitras)
Nan Goldin e seu acerto de contas. Esse é o resumo do novo documentário de Poitras. A maneira com que ela lida com o anseio por justiça de Goldin contra a família Sackler, ao mesmo tempo em que mostra como tragédias pessoais são cicatrizes que nunca se curam, faz com que Poitras atinja o ápice que um filme documental pode possuir: o de responsabilizar não só os maiores culpados, mas sim todos aqueles que nos ferem ao longo do caminho. É o cinema na sua forma mais corajosa e visceral, onde não há barreiras e limites para contar uma história sobre uma luta que pode salvar milhares de vidas. Mas além de todas as questões políticas e sociais que envolvem a história, o filme também é um retrato afiado sobre como o luto muda o que somos. Talvez o sentimento de justiça traga algum conforto, mesmo que essas histórias sejam impossíveis de ser superadas.